sexta-feira, 8 de julho de 2016

ÚLTIMA CHAMADA

Meu voo está atrasado. Problemas no Leonardo da Vince, em Roma. Terei algumas horas a mais no aeroporto, aqui em Guarulhos. Ainda bem que estou na sala vip, com internet e café amargo. Só assim para enfrentar a espera.

Talvez você estranhe este e-mail na sua caixa postal e talvez nem se lembre de que você mesmo anotou seu endereço eletrônico num guardanapo borrado, de batom e vinho tinto. Foi poético. E foi patético, da minha parte, trazer o papel como um troféu, no bolso, para olhar no avião. Eu havia pensado em escrever um dia, já na Itália ou pelas próximas paragens que nem eu sei onde serão. Mas, como tenho tempo e ainda estou sob o impacto da noite de ontem escrevo este e-mail com sabor de nostalgia. Adoro essa palavra, nostalgia.

Confesso que, ontem, quando cheguei ao Fermata Café (meu bar, café, restaurante, meu lugar em São Paulo), não gostei que entre os amigos, escolhidos para minha despedida, houvesse um estranho. Queria passar a última noite no país conversando com os mais íntimos e ter um desconhecido à mesa me deu enjoo. Sou assim. Quando alguma coisa me desagrada ou me desconserta a primeira reação é ficar mareada. Isso vai piorando ou melhorando conforme consigo ou não lidar com a nova situação.

Estou indo morar no exterior. Pelos próximos quatro anos terei endereços, mais ou menos, definidos na Itália. Depois disso, não sei... Só sei que não quero voltar. Nada de decepção com o país, políticos ou situação econômica. Claro que esses aspectos pesam na vida de qualquer um. Mas, minha escolha é pessoal e ultrapassa critérios nacionais. Tenho cinquenta anos, como sussurrei a você ontem... Não sei se você ouviu... Até aqui minha vida foi uma tentativa de agradar e acertar. Agora não me importo se estou certa ou não e prova disso é que escrevo para um ilustre quase desconhecido, não faz nem 24 horas que fomos apresentados.

Mas, voltando... quando cheguei ao Fermata queria matar o amigo que havia tomado a liberdade de levar um outro amigo para minha festa. Por isso sentei bem longe de você, o estranho. E cá entre nós, como você é estranho, não?
Ouvi seu nome e juro que tentei ignorar solenemente sua presença naquela mesa. Mas, a irritação de ter um desconhecido por perto foi se transformando em ternura sufocante. Apesar de detestar seus cabelos sem corte, nem compridos nem curtos, grisalhos demais para os tempos de tintas modernas, apesar de achar seus óculos horrorosos, grandes demais, velhos demais, apesar de achar seu aspecto geral meio sujo, com a barba por fazer de vários dias, e uma roupa que talvez nunca tenha visto um ferro de passar, apesar de suas unhas comidas ao extremo, apesar de detestar seus movimentos meio moles, suas mãos meio bichas, seu jeito dúbio de sorrir, havia algo que atraía meu olhar. Como uma cena de crime. Todos a detestam mas sempre olham.

Curiosidade científica ou não, tentei achar no seu rosto algo que justificasse meu interesse repentino. Acho que vi sombras, um homem que jura ter 41 anos mas parece bem mais, um homem meio cansado, que envelheceu mal, ossudo demais, um homem insuportável. E sabe o que o salvou do meu inferno? A voz. Sua voz mansa, um sotaque musical... você é do sul do país não é? Acho que é. Não perguntei mas pela sonoridade posso apostar. Sua voz me pegou. Fui depondo as armas, mudando de lugar, chegando cada vez mais perto até estar ao seu lado e perceber que sua roupa amarfanhada, afinal, era um charme e que seu perfume, bom demais. Tão bom quanto a voz.

Lembra como começou nossa conversa? Perguntei se você, com aquela voz tão bonita, era cantor. Risadas. Não, você nunca havia estudado canto. Mas, tocava saxofone. Sinceramente? Não acreditei. Deixei que você falasse sobre a delícia de ser um músico, o apego aos estudos, a paixão pelo instrumento, e a dor de ser um músico desempregado, mais um no país. Por que não acreditei? Algo no seu olhar denunciava a brincadeira, mas topei mesmo assim e a conversa tomou corpo. Tomara que você não tenha se esquecido da dica que lhe dei: ler, sem falta, os contos de Lygia Fagundes Telles, “O rapaz do saxofone” e “Apenas um saxofone”. Mesmo que você seja um mentiroso e nunca tenha segurado nas mãos um saxofone, os contos são uma viagem à parte. 

Devo dizer que também menti. Não sou uma escritora em busca de uma história incrível na Itália. Sou tradutora, filha de italianos, tenho cidadania e isso justifica a escolha do país. Só menti no quesito profissão. O resto era verdade. É verdade que fui casada e não tive filhos, que meu marido foi um grande amor e eu o perdi para o alcoolismo. Você parecia interessado na história de como o conheci, na adolescência. Um rapazinho chegando na minha casa e um trabalho de escola por fazer. Com algodão e tinta guache representamos os tipos de nuvens: Cirrus, Cirrocumulus, Cirrostratus, Altocumulus, Altostratus, Nimbostratus, Stratocumulus, Stratus, Cumulus e Cumulonimbus.

Foi linda sua gargalhada, a graça que achou por eu ainda lembrar os nomes das nuvens. O rapaz das nuvens cresceu ao meu lado, de amigos de escola fomos namorados e nos casamos. Dizem que a falta de dinheiro atrapalha os relacionamentos, no nosso caso foi ao contrário. A família dele tinha dinheiro demais e ele, sonhos de menos. O alcoolismo não apareceu de repente, foi aos poucos. Quando nos demos conta ele estava dependente dos drinks diários e nunca admitiu que isso fosse uma doença. Morreu tentando se enganar, dizendo que a bebida era prazer, para relaxar e que ele não tinha sorte com a saúde. Perdi o menino das nuvens. Ele havia se transformado num homem doente, sem força, embriagado o tempo todo.

Neste momento acho que você teve pena de mim, virei a senhora viúva. Por isso mudamos o rumo da conversa. Suas histórias de amor não devem ter sido muito melhores que a minha, percebi que você evitou o assunto. Temos um ponto em comum: colecionamos desencontros. Acho que a partir desse nó, desse momento, eu deveria ter me levantado, para cumprimentar alguém, ir ao banheiro, trocar minha taça, qualquer coisa que me levasse para longe de você. Eu não tinha nenhum motivo para continuar sentada ao seu lado

E foi no último instante que decidi ficar, quando você disse: ei, eu tenho uma história, escute só: outro dia, eu estava correndo na rua... é, eu gosto de correr na rua, à noite, sozinho, concentrado no meu tempo e treino e estava tão alheio a tudo que quase caí por cima de um homem que dormia na rua. Ele se levantou de repente. Num instante lá estava, de roupa escura, saindo do meio de sacos de lixo. Com o susto parei de correr, fiquei na calçada, recuperando o fôlego e observando aquele homem. Sabe o que ele fazia? Ele dançava. Depois do salto que deu, começou a dançar no meio da rua. Ele tinha na cabeça um fone de ouvido, grande, antigo, e o fio desse fone estava enterrado no bolso do casaco rasgado, velho, grande demais para o homem miúdo que ele era. Não sei se naquele bolso havia algum mp-3. O sujeito dançava com tanto gosto! Podia ser uma música imaginária mas ele estava contente, solto, dono do próprio corpo, ele estava numa festa particular. Fiquei ali, olhando, pensando que era contagiante. Eu senti vontade de dançar também e só não o fiz porque não ouvia a mesma música do dançarino de rua. Continuei a corrida e cheguei em casa com a sensação de que exigimos demais de tudo para termos uma alegria. Aquele homem, naquela noite, era bem mais alegre que eu. Gostou? Gostou da história? Sua pergunta era tudo
menos despretensiosa, você tomou um grande gole de vinho, espreitando, aproveitando minha confusão, meu espanto.

Claro que gostei. É uma história e tanto. Tenho outras. Foi o que você disse e se levantou segurando minha mão. Tenho outras histórias, vamos? Como assim, vamos? Vamos para onde? Eu sou o centro desta reunião de despedida, pelo menos era isso que eu pensava, mas percebi que meus amigos estavam bem entrosados, conversando e nem notaram quando nos levantamos e deixamos a mesa. Seu maluco, para onde vamos? Para a praia, vamos ver o mar. Não, nem pensar. Meu voo é amanhã, lembra? Estou de partida, não vou sair de São Paulo. E quem disse que você vai sair daqui? A praia é pertinho, venha comigo. Eu fui, segurando sua mão, seguindo um rapaz mal vestido, mal barbeado, um ladrão... sim, porque você havia acabado de me roubar da festa, do bar, de mim mesma. Onde eu estava com a cabeça para sair no meio da noite com alguém que nunca havia visto antes e a poucas horas de pegar as malas e embarcar para outro país? Onde eu estou com a cabeça, cheguei a perguntar, você ouviu? Mas, nem pensei em alguma resposta porque você já dizia: bom, eu disse que tenho mais histórias e tenho mesmo.

Enquanto subíamos a rua Augusta, deixando os Jardins, em direção à Paulista, veio sua segunda história. Agora, você era um garoto, 15 anos. Estava no ônibus, voltava do colégio. Ao seu lado o amigo-namorado... ah, eu sabia... senti mesmo que você era meio gay. O tipo de homem que qualquer mulher deseja como namorado: atencioso, doce, capaz de mastigar pétalas, capaz de rabiscar poemas, capaz de amar... amar homens e mulheres, tanto faz. Num ônibus você seguia com seu amor adolescente e conversavam sobre a relação, a descoberta, o sexo jovial. E você, só você, percebeu que havia uma garota sentada no banco da frente, desses bancos para pessoas idosas ou grávidas, bancos solitários. A garota, que você não conhecia, mas calculava ser da mesma idade, chorava. Ela não fazia alarde, chorava sem barulho, sem se mexer praticamente. Não havia gestos, rituais que dessem a moldura da cena do choro mas você sabia, intimamente, que aquela garota estava chorando e assim ela o fez por toda a viagem. Na janela do ônibus dava para ver o reflexo do rosto dela, o esboço do que você imaginava que fossem as lágrimas. Até que o ponto onde você e seu namorado desceriam chegou, um ponto antes do final da linha. Não havia nada a fazer a não ser deixar o ônibus. Foi o que você fez, mas no dia seguinte, e por quatro semanas seguidas, vasculhou as ruas próximas ao ponto final do ônibus imaginando que, a qualquer momento, veria a menina. Andou pelo bairro em horários diferentes, olhou os jardins das casas, sentou-se por horas na calçada onde aquela linha de ônibus terminava e nada. A moça nunca apareceu. Depois você ainda voltou ao local até que desistiu. A gente sempre desiste de alguma coisa aos 15 anos. Assim, você finalizou a história.

A essa altura da conversa já estávamos na avenida Paulista e você avisou: pronto! Chegamos à praia, sente-se aqui. O "aqui" era um degrau da escadaria do 900 da Paulista, endereço conhecido de estudantes, frequentadores de cinema e fãs de quadrinhos. Como assim, praia? Isso mesmo. Veja só, nesta escadaria, perceba... estamos numa praia, a via dos carros é o mar. Ouça o som das ondas... os carros passando, o metrô embaixo da terra, a radiação das torres de tv e rádio...tudo isso, percebe? Tudo isso forma o mar: a mesma agitação, o mesmo mistério, o mesmo perigo. Aqui, quem não sabe nadar se afoga do mesmo jeito.

Não sei quanto tempo ficamos sentados, em silêncio, olhando o mar. Foi muito tempo, tanto que começou a amanhecer e eu saí do transe. Havia minha viagem, malas, aeroporto, era hora de partir. Vou embora. É, eu sei. Mas, você poderia ficar se quisesse. Se quisesse? Não meu caro, nada tão simples assim... e foi nesse momento que você me deu aquele beijo, delicado, suave mas capaz de escancarar a porta do desejo. Não posso, tentei dizer. Vou embora, tenho horário, passagem comprada, aluguel pago em Roma. Na sua casa ou na minha, você ainda perguntou, meio tonto com o beijo, meio perdido também... Esses beijos são estranhos. Raros. Absurdos, impensáveis. Nunca deveriam existir, eles desafiam a lógica. Na sua casa ou na minha? Acho que eu moro mais perto... vamos? Não posso, vou embora...
E fui. Não sem antes roubar mais alguns beijos que foram tudo menos o primeiro. Foram mais indecentes, mais perversos, mais pensados, decididos. Mas eu já lamentava a ausência da sensação do primeiro. Se aquele beijo tivesse se repetido seria bem mais difícil deixar a escadaria e entrar no primeiro táxi que passava. Se aquele beijo não tivesse se consumido, eu acho que teria arrancado sua roupa no meio da rua. Mas, o beijo rabo de cometa é assim, aparece, se consome passa.


Começaram a chamar meu voo. Preciso concluir este e-mail. Só pensei em explicar porque não cedi ao seu convite para ficar. Certamente, se ficasse, teríamos uma história de amor. Um bom e envolvente amor, com muitas noites, manhãs e tardes passadas na cama. De sessões de sexo selvagem a conversas cheias de preguiça, filmes na tv, pipoca e sal, pizza e sorvete. Eu conheceria seus amigos e você os meus, viagens, jantares, finais de ano e férias. Acho que teríamos uns três anos de envolvimento até que o cansaço chegasse. A partir desse momento tudo faria diferença: eu ser mais velha que você, não termos filhos nem cachorros. Os desencontros ficariam cada vez mais marcantes: eu fumo, você corre; eu tomo muito vinho, você só degusta; eu detesto comida chinesa, você não come peixe cru; eu pinto os cabelos, faço as unhas, uso cremes antes de dormir e filtros solares variados e você no máximo toma banho. Eu começaria a implicar com seus cds, revistas e jornais espalhados pela casa e você começaria a criticar a forma como dirijo, mandando ao inferno os motoristas lentos na minha frente. Eu teria muita implicância com seus amigos e suas amigas mais jovens e também com seus homens mais velhos. Eu não saberia ser fiel e tentaria deixar isso bem claro, para que você notasse e me odiasse. Com a insegurança instalada em breve haveria o momento de discutir a relação: pela manhã, à tarde e à noite. Infinitos momentos aumentando o desencanto. Você isso, eu aquilo e nós sem futuro. Mágoa. Distanciamento. Malas feitas.

Percebe? Tenho idade suficiente para adivinhar o final das histórias, não me deixo enganar por um punhado de bons orgasmos, para saber que tudo sempre termina da mesma forma: com o fim. Chegaríamos a esse inevitável fim e eu não tenho mais tempo para sofrer, ter saudade e carregar desafetos.
Você vai dizer que sou amarga, que pareço deprimida. Nem um nem outro. Apenas conheço a dinâmica das relações e cansei do jogo. Meu objetivo de vida é não me aborrecer. Pequenas emoções garantem pequenas decepções. Com elas eu posso lidar. Mas não poderia lidar com a sua imagem perdida. Por isso, não o quero comigo.

Partindo garanto para nós um desejo que nunca vai se desgastar. Estará vivo e pode até ser mais uma das suas histórias de sedutor mentiroso. Congelada a cena do beijo no meio da avenida Paulista temos a cenário perfeita, o amor ideal. Última chamada para o meu voo. Lá vou eu. Aqui fica você. E entre nós, uma avenida, com uma praia estranha, uma madrugada de histórias e um desejo de última hora.

ANA CARDILHO

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