sábado, 9 de julho de 2016

DE NÓS EM NÓS



"...e foram virando peixes, virando conchas, virando seixos, virando areia, prateada areia, com lua cheia e à beira-mar..." 
Ela só sabe esse verso da música que chamam de Mar e Lua.  Ela só sabe que não adiantaria saber o restante nem diversidade alguma de letras e sons. Ela só sabe que vai entrar no mar. E ela não sabe nadar. Nunca soube e pior agora que decidiu não ter mais medo do que pode acontecer. 

Vai acontecer. Ela sabe, é inevitável, afinal. Sempre soube que o mar a chamava com esse canto que dizem ser de sereia mas ela duvida porque ouve uma voz bem distante de como cantaria uma sereia em madrugada de lua cheia e à beira-mar.

A voz que ela vai seguir entrando no mar sem saber nadar é grave. Como são agora seus gestos. Graves. Definitivos. Tirar a roupa, abandonar os sapatos, soltar os cabelos, soltar as amarras que ainda poderiam existir, longínquos pedaços de cais, recortes do que foram ilhas, portos, pedaços de terra. Não há mais nó que a suporte. Só o mar pode marcar o passo com a indecisão de um som que não sabe se vai ou se volta e é no meio dele que tudo pode ser achado para nunca mais ser perdido ou nada pode ser perdido para todo o sempre encontrado. Amém.


Amém ela diz e entra no mar. A voz mais nítida, agora um lamento cheio de areia, cheio da areia que ela vem trazendo nas mãos fechadas que se recusam a nadar. Nem tenta. Não sabe mesmo. Quanto mais fundo, mais coberta de água, mais selada de sal, mais levada para o fundo, mais perto da voz grave e doce e seus pulmões estourando de maresia, inchando o que ela ainda pensava saber das palavras. 

Ela sabe que vai ver o dono da voz e imagina que ele tenha no peito um nó bem atado, balso, balsa, nó de capitão afogado. Ela sabe que ele terá os olhos azuis, excessos de algas, e terá na pele cicatrizes de conchas. Ela sabe que ele a espera. Há um lugar para seu corpo se decompor junto ao dele sob o mesmo nó nunca partido. E só o nó há de ficar, dessas teimosias que não perdem a hora, dessas insistências que atravessam anos e marés e sempre chegam. Dia atrás do outro. E chegam. 

Ela sabe que o amante morto em nó está mais vivo do que todos os deuses marinhos e entidades do sal e orixás da areia e divindades que gostem de estrelas e entendam de latitudes e direções. Ela não sabe andar na terra e não sabe nadar. Mas pode voar depois do primeiro abraço balso, dos primeiros apertos dos nós dos dedos das mãos enrugadas do dono da voz. Trovão feito sino debaixo d´água. Destino de barca que foi mulher por engano de cálculos e agora recebe o batismo do nome de seu nome. 

Enfim, náufragos. 
Sem socorro e bem mais sós que todo o resto do mar e o resto do mundo e o resto dos restos dos restos dos restos... 
Que só isso há de restar: um nó de marinheiro.

ANA CARDILHO 
2007















sexta-feira, 8 de julho de 2016

ÚLTIMA CHAMADA

Meu voo está atrasado. Problemas no Leonardo da Vince, em Roma. Terei algumas horas a mais no aeroporto, aqui em Guarulhos. Ainda bem que estou na sala vip, com internet e café amargo. Só assim para enfrentar a espera.

Talvez você estranhe este e-mail na sua caixa postal e talvez nem se lembre de que você mesmo anotou seu endereço eletrônico num guardanapo borrado, de batom e vinho tinto. Foi poético. E foi patético, da minha parte, trazer o papel como um troféu, no bolso, para olhar no avião. Eu havia pensado em escrever um dia, já na Itália ou pelas próximas paragens que nem eu sei onde serão. Mas, como tenho tempo e ainda estou sob o impacto da noite de ontem escrevo este e-mail com sabor de nostalgia. Adoro essa palavra, nostalgia.

Confesso que, ontem, quando cheguei ao Fermata Café (meu bar, café, restaurante, meu lugar em São Paulo), não gostei que entre os amigos, escolhidos para minha despedida, houvesse um estranho. Queria passar a última noite no país conversando com os mais íntimos e ter um desconhecido à mesa me deu enjoo. Sou assim. Quando alguma coisa me desagrada ou me desconserta a primeira reação é ficar mareada. Isso vai piorando ou melhorando conforme consigo ou não lidar com a nova situação.

Estou indo morar no exterior. Pelos próximos quatro anos terei endereços, mais ou menos, definidos na Itália. Depois disso, não sei... Só sei que não quero voltar. Nada de decepção com o país, políticos ou situação econômica. Claro que esses aspectos pesam na vida de qualquer um. Mas, minha escolha é pessoal e ultrapassa critérios nacionais. Tenho cinquenta anos, como sussurrei a você ontem... Não sei se você ouviu... Até aqui minha vida foi uma tentativa de agradar e acertar. Agora não me importo se estou certa ou não e prova disso é que escrevo para um ilustre quase desconhecido, não faz nem 24 horas que fomos apresentados.

Mas, voltando... quando cheguei ao Fermata queria matar o amigo que havia tomado a liberdade de levar um outro amigo para minha festa. Por isso sentei bem longe de você, o estranho. E cá entre nós, como você é estranho, não?
Ouvi seu nome e juro que tentei ignorar solenemente sua presença naquela mesa. Mas, a irritação de ter um desconhecido por perto foi se transformando em ternura sufocante. Apesar de detestar seus cabelos sem corte, nem compridos nem curtos, grisalhos demais para os tempos de tintas modernas, apesar de achar seus óculos horrorosos, grandes demais, velhos demais, apesar de achar seu aspecto geral meio sujo, com a barba por fazer de vários dias, e uma roupa que talvez nunca tenha visto um ferro de passar, apesar de suas unhas comidas ao extremo, apesar de detestar seus movimentos meio moles, suas mãos meio bichas, seu jeito dúbio de sorrir, havia algo que atraía meu olhar. Como uma cena de crime. Todos a detestam mas sempre olham.

Curiosidade científica ou não, tentei achar no seu rosto algo que justificasse meu interesse repentino. Acho que vi sombras, um homem que jura ter 41 anos mas parece bem mais, um homem meio cansado, que envelheceu mal, ossudo demais, um homem insuportável. E sabe o que o salvou do meu inferno? A voz. Sua voz mansa, um sotaque musical... você é do sul do país não é? Acho que é. Não perguntei mas pela sonoridade posso apostar. Sua voz me pegou. Fui depondo as armas, mudando de lugar, chegando cada vez mais perto até estar ao seu lado e perceber que sua roupa amarfanhada, afinal, era um charme e que seu perfume, bom demais. Tão bom quanto a voz.

Lembra como começou nossa conversa? Perguntei se você, com aquela voz tão bonita, era cantor. Risadas. Não, você nunca havia estudado canto. Mas, tocava saxofone. Sinceramente? Não acreditei. Deixei que você falasse sobre a delícia de ser um músico, o apego aos estudos, a paixão pelo instrumento, e a dor de ser um músico desempregado, mais um no país. Por que não acreditei? Algo no seu olhar denunciava a brincadeira, mas topei mesmo assim e a conversa tomou corpo. Tomara que você não tenha se esquecido da dica que lhe dei: ler, sem falta, os contos de Lygia Fagundes Telles, “O rapaz do saxofone” e “Apenas um saxofone”. Mesmo que você seja um mentiroso e nunca tenha segurado nas mãos um saxofone, os contos são uma viagem à parte. 

Devo dizer que também menti. Não sou uma escritora em busca de uma história incrível na Itália. Sou tradutora, filha de italianos, tenho cidadania e isso justifica a escolha do país. Só menti no quesito profissão. O resto era verdade. É verdade que fui casada e não tive filhos, que meu marido foi um grande amor e eu o perdi para o alcoolismo. Você parecia interessado na história de como o conheci, na adolescência. Um rapazinho chegando na minha casa e um trabalho de escola por fazer. Com algodão e tinta guache representamos os tipos de nuvens: Cirrus, Cirrocumulus, Cirrostratus, Altocumulus, Altostratus, Nimbostratus, Stratocumulus, Stratus, Cumulus e Cumulonimbus.

Foi linda sua gargalhada, a graça que achou por eu ainda lembrar os nomes das nuvens. O rapaz das nuvens cresceu ao meu lado, de amigos de escola fomos namorados e nos casamos. Dizem que a falta de dinheiro atrapalha os relacionamentos, no nosso caso foi ao contrário. A família dele tinha dinheiro demais e ele, sonhos de menos. O alcoolismo não apareceu de repente, foi aos poucos. Quando nos demos conta ele estava dependente dos drinks diários e nunca admitiu que isso fosse uma doença. Morreu tentando se enganar, dizendo que a bebida era prazer, para relaxar e que ele não tinha sorte com a saúde. Perdi o menino das nuvens. Ele havia se transformado num homem doente, sem força, embriagado o tempo todo.

Neste momento acho que você teve pena de mim, virei a senhora viúva. Por isso mudamos o rumo da conversa. Suas histórias de amor não devem ter sido muito melhores que a minha, percebi que você evitou o assunto. Temos um ponto em comum: colecionamos desencontros. Acho que a partir desse nó, desse momento, eu deveria ter me levantado, para cumprimentar alguém, ir ao banheiro, trocar minha taça, qualquer coisa que me levasse para longe de você. Eu não tinha nenhum motivo para continuar sentada ao seu lado

E foi no último instante que decidi ficar, quando você disse: ei, eu tenho uma história, escute só: outro dia, eu estava correndo na rua... é, eu gosto de correr na rua, à noite, sozinho, concentrado no meu tempo e treino e estava tão alheio a tudo que quase caí por cima de um homem que dormia na rua. Ele se levantou de repente. Num instante lá estava, de roupa escura, saindo do meio de sacos de lixo. Com o susto parei de correr, fiquei na calçada, recuperando o fôlego e observando aquele homem. Sabe o que ele fazia? Ele dançava. Depois do salto que deu, começou a dançar no meio da rua. Ele tinha na cabeça um fone de ouvido, grande, antigo, e o fio desse fone estava enterrado no bolso do casaco rasgado, velho, grande demais para o homem miúdo que ele era. Não sei se naquele bolso havia algum mp-3. O sujeito dançava com tanto gosto! Podia ser uma música imaginária mas ele estava contente, solto, dono do próprio corpo, ele estava numa festa particular. Fiquei ali, olhando, pensando que era contagiante. Eu senti vontade de dançar também e só não o fiz porque não ouvia a mesma música do dançarino de rua. Continuei a corrida e cheguei em casa com a sensação de que exigimos demais de tudo para termos uma alegria. Aquele homem, naquela noite, era bem mais alegre que eu. Gostou? Gostou da história? Sua pergunta era tudo
menos despretensiosa, você tomou um grande gole de vinho, espreitando, aproveitando minha confusão, meu espanto.

Claro que gostei. É uma história e tanto. Tenho outras. Foi o que você disse e se levantou segurando minha mão. Tenho outras histórias, vamos? Como assim, vamos? Vamos para onde? Eu sou o centro desta reunião de despedida, pelo menos era isso que eu pensava, mas percebi que meus amigos estavam bem entrosados, conversando e nem notaram quando nos levantamos e deixamos a mesa. Seu maluco, para onde vamos? Para a praia, vamos ver o mar. Não, nem pensar. Meu voo é amanhã, lembra? Estou de partida, não vou sair de São Paulo. E quem disse que você vai sair daqui? A praia é pertinho, venha comigo. Eu fui, segurando sua mão, seguindo um rapaz mal vestido, mal barbeado, um ladrão... sim, porque você havia acabado de me roubar da festa, do bar, de mim mesma. Onde eu estava com a cabeça para sair no meio da noite com alguém que nunca havia visto antes e a poucas horas de pegar as malas e embarcar para outro país? Onde eu estou com a cabeça, cheguei a perguntar, você ouviu? Mas, nem pensei em alguma resposta porque você já dizia: bom, eu disse que tenho mais histórias e tenho mesmo.

Enquanto subíamos a rua Augusta, deixando os Jardins, em direção à Paulista, veio sua segunda história. Agora, você era um garoto, 15 anos. Estava no ônibus, voltava do colégio. Ao seu lado o amigo-namorado... ah, eu sabia... senti mesmo que você era meio gay. O tipo de homem que qualquer mulher deseja como namorado: atencioso, doce, capaz de mastigar pétalas, capaz de rabiscar poemas, capaz de amar... amar homens e mulheres, tanto faz. Num ônibus você seguia com seu amor adolescente e conversavam sobre a relação, a descoberta, o sexo jovial. E você, só você, percebeu que havia uma garota sentada no banco da frente, desses bancos para pessoas idosas ou grávidas, bancos solitários. A garota, que você não conhecia, mas calculava ser da mesma idade, chorava. Ela não fazia alarde, chorava sem barulho, sem se mexer praticamente. Não havia gestos, rituais que dessem a moldura da cena do choro mas você sabia, intimamente, que aquela garota estava chorando e assim ela o fez por toda a viagem. Na janela do ônibus dava para ver o reflexo do rosto dela, o esboço do que você imaginava que fossem as lágrimas. Até que o ponto onde você e seu namorado desceriam chegou, um ponto antes do final da linha. Não havia nada a fazer a não ser deixar o ônibus. Foi o que você fez, mas no dia seguinte, e por quatro semanas seguidas, vasculhou as ruas próximas ao ponto final do ônibus imaginando que, a qualquer momento, veria a menina. Andou pelo bairro em horários diferentes, olhou os jardins das casas, sentou-se por horas na calçada onde aquela linha de ônibus terminava e nada. A moça nunca apareceu. Depois você ainda voltou ao local até que desistiu. A gente sempre desiste de alguma coisa aos 15 anos. Assim, você finalizou a história.

A essa altura da conversa já estávamos na avenida Paulista e você avisou: pronto! Chegamos à praia, sente-se aqui. O "aqui" era um degrau da escadaria do 900 da Paulista, endereço conhecido de estudantes, frequentadores de cinema e fãs de quadrinhos. Como assim, praia? Isso mesmo. Veja só, nesta escadaria, perceba... estamos numa praia, a via dos carros é o mar. Ouça o som das ondas... os carros passando, o metrô embaixo da terra, a radiação das torres de tv e rádio...tudo isso, percebe? Tudo isso forma o mar: a mesma agitação, o mesmo mistério, o mesmo perigo. Aqui, quem não sabe nadar se afoga do mesmo jeito.

Não sei quanto tempo ficamos sentados, em silêncio, olhando o mar. Foi muito tempo, tanto que começou a amanhecer e eu saí do transe. Havia minha viagem, malas, aeroporto, era hora de partir. Vou embora. É, eu sei. Mas, você poderia ficar se quisesse. Se quisesse? Não meu caro, nada tão simples assim... e foi nesse momento que você me deu aquele beijo, delicado, suave mas capaz de escancarar a porta do desejo. Não posso, tentei dizer. Vou embora, tenho horário, passagem comprada, aluguel pago em Roma. Na sua casa ou na minha, você ainda perguntou, meio tonto com o beijo, meio perdido também... Esses beijos são estranhos. Raros. Absurdos, impensáveis. Nunca deveriam existir, eles desafiam a lógica. Na sua casa ou na minha? Acho que eu moro mais perto... vamos? Não posso, vou embora...
E fui. Não sem antes roubar mais alguns beijos que foram tudo menos o primeiro. Foram mais indecentes, mais perversos, mais pensados, decididos. Mas eu já lamentava a ausência da sensação do primeiro. Se aquele beijo tivesse se repetido seria bem mais difícil deixar a escadaria e entrar no primeiro táxi que passava. Se aquele beijo não tivesse se consumido, eu acho que teria arrancado sua roupa no meio da rua. Mas, o beijo rabo de cometa é assim, aparece, se consome passa.


Começaram a chamar meu voo. Preciso concluir este e-mail. Só pensei em explicar porque não cedi ao seu convite para ficar. Certamente, se ficasse, teríamos uma história de amor. Um bom e envolvente amor, com muitas noites, manhãs e tardes passadas na cama. De sessões de sexo selvagem a conversas cheias de preguiça, filmes na tv, pipoca e sal, pizza e sorvete. Eu conheceria seus amigos e você os meus, viagens, jantares, finais de ano e férias. Acho que teríamos uns três anos de envolvimento até que o cansaço chegasse. A partir desse momento tudo faria diferença: eu ser mais velha que você, não termos filhos nem cachorros. Os desencontros ficariam cada vez mais marcantes: eu fumo, você corre; eu tomo muito vinho, você só degusta; eu detesto comida chinesa, você não come peixe cru; eu pinto os cabelos, faço as unhas, uso cremes antes de dormir e filtros solares variados e você no máximo toma banho. Eu começaria a implicar com seus cds, revistas e jornais espalhados pela casa e você começaria a criticar a forma como dirijo, mandando ao inferno os motoristas lentos na minha frente. Eu teria muita implicância com seus amigos e suas amigas mais jovens e também com seus homens mais velhos. Eu não saberia ser fiel e tentaria deixar isso bem claro, para que você notasse e me odiasse. Com a insegurança instalada em breve haveria o momento de discutir a relação: pela manhã, à tarde e à noite. Infinitos momentos aumentando o desencanto. Você isso, eu aquilo e nós sem futuro. Mágoa. Distanciamento. Malas feitas.

Percebe? Tenho idade suficiente para adivinhar o final das histórias, não me deixo enganar por um punhado de bons orgasmos, para saber que tudo sempre termina da mesma forma: com o fim. Chegaríamos a esse inevitável fim e eu não tenho mais tempo para sofrer, ter saudade e carregar desafetos.
Você vai dizer que sou amarga, que pareço deprimida. Nem um nem outro. Apenas conheço a dinâmica das relações e cansei do jogo. Meu objetivo de vida é não me aborrecer. Pequenas emoções garantem pequenas decepções. Com elas eu posso lidar. Mas não poderia lidar com a sua imagem perdida. Por isso, não o quero comigo.

Partindo garanto para nós um desejo que nunca vai se desgastar. Estará vivo e pode até ser mais uma das suas histórias de sedutor mentiroso. Congelada a cena do beijo no meio da avenida Paulista temos a cenário perfeita, o amor ideal. Última chamada para o meu voo. Lá vou eu. Aqui fica você. E entre nós, uma avenida, com uma praia estranha, uma madrugada de histórias e um desejo de última hora.

ANA CARDILHO

quarta-feira, 6 de julho de 2016

PONTO FINAL

Sabe por que resolvi escrever, mais uma vez, para você? Porque esta será a definitiva, derradeira e, fim de conversa, eu juro, última carta. É sério. Imagino você rindo, duvidando, suspirando e fazendo caretas. Tudo bem, pode rir. Sou mesmo seu palhaço preferido, o bobo que faz sua corte há vinte anos. Tem noção disso? Há duas décadas estamos neste espaço vago. Há vinte anos há uma chuva parada entre nós.
Eu sei que este desabafo será mais um entre todas as cartas que mandei, você recebeu, leu e silenciou. Entendo. Você faz isso para não me dar certeza de que a carta chegou. Truque barato. Assim, estou sempre na dúvida. Talvez eu goste e, pior, necessite da dúvida. Por isso só mando cartas. Se mandasse e-mail teria certeza do seu desprezo. Mas, a carta não. A carta pode ter sido extraviada em algum lugar do caminho. Pode existir uma gangue de carteiros apaixonados por você que jogam fora todos os meus envelopes selados. Eles reconhecem letra e nome no remetente e não perdem tempo: rasgam a carta e jogam os pedaços aos poucos, pedaços de pão de João e Maria. 
Lembra dessa história? Na única vez em que pensamos na absurda e improvável hipótese de termos filhos combinamos que teríamos dois: João e Maria. Não seriam abandonados em nenhuma floresta e nem torturados por uma bruxa. faríamos com quem fossem crianças legais, tranquilas... só para compensar as crianças neuróticas que nós dois sabemos que fomos.
Eu dizia que preciso da dúvida, preciso me enganar e achar que talvez esses anos todos você não tenha recebido minhas cartas. Faz quanto tempo que não nos vemos nem nos falamos? Cinco anos? Já? Pois é, mas as notícias sempre chegam. Alguns amigos em comum fazem questão. Ouço seu nome na roda, faço cara de total desinteresse mas afio os ouvidos. E vou sabendo: pelas mulheres que você engordou um pouco e está malhando, que mudou a cor dos cabelos pra esconder os brancos, mas que sua pele está ótima, que não come mais carne e que era lindo o vestido usado na cerimônia do segundo casamento. Pelos homens, que seu novo marido tem muito dinheiro, que só anda em carro importado, que vocês moram em uma cobertura e que o maridão fez um milionário seguro de vida em seu nome. 
Impressões. Fico quieto no meu canto, mexendo em cds, preparando outra bebida, fingindo interesse nos vizinhos do prédio ao lado. Os amigos conversam, sempre falam em você na minha frente, sem cerimônia. Não ligam ou não percebem minha angústia. Vou ficando amuado, triste, o jantar cai mal e quase sempre vou embora antes de ficar bêbado o suficiente para dar vexame na casa de alguém, antes de cair chorando no meio da conversa e dizer a eles mas que merda, não respeitam minha saudade? Não sabem que nesses anos todos eu ainda sou maluco por você? Aposto que se fizesse isso, eles dariam muita risada, diriam que a piada estava ótima e continuariam falando e falando sobre você e seu novo casamento e sua vida de viagens exóticas e milionárias. Os amigos não são cruéis, eles apenas não podem imaginar o que se passa comigo. Sou o tipo calado. Só sei escrever cartas a você, com confissões de amor, arrependimento, saudade... cartas sem resposta, sem ecos, sem som.
Domingo passado, no meio do almoço, na casa da sua melhor amiga e minha sócia, soube que você está grávida. Fizeram um brinde a isso... levantaram as taças, disseram seu nome com votos de felicidade. Só então perceberam que eu não estava brindando. Ei, você não ouviu? Ela está grávida! Não é demais? Vamos brindar, pega a taça aí, deixa de preguiça. Todos se levantaram, brindaram de novo e eu fiquei como estava, brincando de estátua. Eu sabia que precisava me mexer, que deveria fazer alguma coisa além de ficar ali, com os óculos quase caindo da ponta do meu nariz, as mãos no colo e aquela cor de cera na minha cara. Eu precisava levantar antes que vomitasse no meio da mesa, no meio da travessa de macarrão. Eu precisava ir ao banheiro e ter a mais violenta diarreia que uma pessoa pode ter antes de morrer. Eu precisava pular num rio lamacento e ficar preso lá embaixo. Eu precisava que um boeing batesse no meu corpo, me fizesse em pedaços. Eu precisava sentir alguma coisa, dor, nojo, medo... qualquer sensação que me tirasse da cantilena que se repetia e se repetia e se repetia: você está grávida!
Não bastou que se casasse pela segunda vez e seu marido fosse jovem, esportista e milionário? Eu já estava morto diante disso. Você precisava mesmo engravidar desse cara que deve usar perfumes importados, camisas inglesas e sapatos italianos? Precisava ter um filho? Um bebê, uma criança? Você não teve filhos do primeiro marido e nem dos seus sei lá quantos amantes. Por que um filho agora? Pelas minhas contas você está com quarenta e um anos. É perigoso. É gravidez de risco. Tinha que ser meu esse seu filho. Como combinamos, como planejamos, como prometemos, João e Maria, lembra? 
Seus maridos, namorados, casos... eu poderia ignorar e mandar minhas cartas e manter meu amor. Se eles lessem minhas declarações, inclusive, seria um ganho. Saberiam da minha existência e que eu sempre estarei acima de tudo. Eles passam, todos. Eu não. De um modo ou de outro, eu tenho certeza, sempre estive presente. Mas, um filho é diferente. Um não nosso filho muda tudo e eu não quero que essa criança, mais tarde, venha a ler minhas cartas e não quero que ela saiba que eu deveria ter sido o pai e que o pai biológico dela está no lugar errado, família errada, tempo errado. 
Digo tempo errado e emperro, patino e já não sei se vale a pena continuar esta carta. Seu filho não está no tempo errado, afinal. Eu é que estou. Estou sempre atrasado em relação a você. Quando a conheci e me apaixonei foi só o começo desse relógio desordenado que nos dá o tom. Eu estava casado, muitos anos de relação estável e segura, e não tive coragem para mudar minha vida e ficar com você. Essa foi a primeira vez em que nos neguei. Foram três vezes, três negativas. A segunda, quando meu casamento, nem tão sólido assim, acabou. Claro que pensei em procurar por você. Fiz planos, bolei estratégias. Estava com tudo pronto dentro da minha cabeça, nossa vida em comum. Poderíamos nos encontrar sem culpas, em público. Finalmente seríamos namorados! Só me esqueci de um detalhe: contar a você. E quando vi era melhor silenciar. Você estava feliz com seu primeiro marido. Não havia lugar para mim. Fora as cartas que mandei, por hábito, fiquei distante.
Até que chegamos bem perto de uma chance. Lembra de um jantar com cara de encontro entre velhos e saudosos amigos? Um restaurante deserto, à noite. Peixe e vinho. Eu estava sozinho, sem nenhum namoro, você recém-separada. O que poderia nos impedir? O que poderia atrapalhar? Aquela era a hora para, de uma vez por todas, assumirmos uma relação. Não era? Não. Não era. Descobrimos isso de forma rápida e dolorosa. Você, afinal, não estava tão separada assim e eu não estava tão sozinho como tentava acreditar. Depois da frustração nunca mais tentamos um contato, nem nos falamos, nem nos vimos. É estranho. Parece que morremos um para o outro.
Chego a duvidar da minha sanidade nestes momentos em que teimo em escrever cartas para você. Fico horas pensando nos detalhes de tudo que deu errado e imaginando se haveria algum jeito de voltar o tempo ou então de avançá-lo o suficiente para você se esquecer da minha covardia e me dar uma nova chance. Mas, agora... você grávida... não haverá chance alguma para mim. Mesmo que seu maridão de ouro não dure muito no cenário, ainda assim haverá o filho e uma ligação contínua. Entre nós não há nada, não é?  Além das minhas idéias absurdas de comovê-la, além dos meus fantasmas, da minha saudade sufocante, paralisante, não há nada. 
E é incrível como não nos encontramos, por acaso, em algum restaurante, porta de cinema, casa de amigos. Nunca nos vemos! É como se houvesse um coreógrafo cuidando para que nossos passos estejam sempre ao contrário. Sou sua noite mais assustadora, com tempestade, monstros e sem luz. Você é o dia claro, quente, que teima em me acordar, que insiste em me fazer ver que estou vivo.
Será que antes de sumirmos deste planeta teremos um momento, um instante, um minuto que seja para nos olharmos como antigamente? Ou vou morrer sem saber, ao certo, o que você pensa sobre meu amor? Gosto de dizer que entendo seu silêncio, sua ausência. Mas a verdade é que ando cansado. O tempo passando e cada vez menos chance de acontecer um encontro, um entendimento entre nós.
Esta é a última carta. Se você não a responder, nem mandar algum sinal de vida, vou poupar a gangue dos carteiros de trabalhos futuros. Eles podem ficar com você. Seu marido “barbi” pode ficar com você. Seu filho mimado (já tenho implicância com o bebê) pode ficar com você. Só eu não vou ficar, apesar de conhecer a textura da sua pele um milhão de vezes mais que todos os seus amantes juntos. Desafio qualquer um a reconhecer seus cheiros, de olhos fechados, como eu garanto que posso fazer. Conheço todos os nuances da sua voz. Sei dizer, ouvindo um simples alô, se você está alegre ou aborrecida. Mas eu não vou ficar com você.
Sou lento. Acho que só agora me dou conta de que sua decisão foi tomada há anos e eu fiz de tudo para não acreditar e agir como se estivesse sempre esperando você telefonar, escrever ou aparecer, de repente, na porta da minha casa. Mas você não vai aparecer, não é? Eu sei que não vai...  Por essa certeza, sigo o conselho secular de minha avó. Ela bordava com ponto em cruz e dizia que o mais importante era o nó antes e depois do traçado, o ponto final. Sem ele todo o desenho poderia ser perdido. E, depois de tanto tempo, fica aqui o fim do nosso bordado. Depois de tantos nós, chegamos ao ponto final.
ANA CARDILHO

terça-feira, 5 de julho de 2016

A DESCOBERTA

As crianças entraram na escola há mais de meia hora. Desde então ele está ali, no carro, com as mãos segurando o volante, olhando o nada e com o rádio ligado. Ele não passou filtro solar. Não tem o hábito. O lado esquerdo do rosto está levemente vermelho, queimado. Mas ele não liga. Não sente dor. Assim como não sente alegria. Ele sabe que deveria deixar as crianças na escola e isso já fez, cumpriu a missão. Agora, deveria reconhecer o próximo lance do jogo e se há algum sentido ou ordem racional. Mas, tudo acaba de se fazer confuso.

Ele está ali porque não sabe que poderia ir para outro lugar, outro país ou simplesmente voltar para casa. Ah, é isso?! É, isso mesmo! Ele tem que deixar as crianças na escola e voltar para casa. Um percurso curto. Ele conhece o caminho. Agora que se lembrou do que deve fazer, liga o carro e vai. Tudo como deveria ser. Manter uma ordem racional o ajuda a pensar e a agir.

Ele sabe que hoje é segunda-feira e nas segundas é dia de vestir a camiseta pólo azul claro, com o jeans escuro. No meio da tarde ele deve levar as crianças para a natação. Isso obedece a uma cronologia exata. Nunca na segunda-feira será dia de vestir a camiseta pólo branca. Essa ele só usa nas sextas-feiras, com jeans claro. Seguindo à risca os passos certos tudo ficará bem, tudo seguirá uma harmonia tão concreta que ele poderá quase tocá-la, pegá-la nas mãos, e ele poderá se sentir seguro no meio de uma quarta-feira se estiver usando a camiseta pólo preta. Ele fica bem de preto. Tem os olhos azuis e a pele clara, herança dos antepassados holandeses.

Agora está tudo bem. Ele já deixou as crianças na escola. Ele se deu conta de que deveria voltar para casa e conseguiu fugir do vazio que se aproximava e que fez com que ele perdesse meia hora dentro carro, cozinhando ao sol. Mas, já passou. São onze da manhã, está tudo bem e ele está entrando em casa. O carro fica na garagem. O cachorro se aproxima balançando o rabo, latindo. É bom ter um cachorro assim, amoroso. Isso faz parte da sensação de confiança da qual ele precisa para manter-se atento.

A mulher dele já saiu. Foi trabalhar. Ela é médica e não tem tempo para nada. Mal vê os filhos, mal vê o cachorro e a casa. Mal vê a si mesma e a ele que tenta não se encontrar com ela sem ninguém por perto. É preciso sempre ter alguém por perto porque ele não confia na mulher e sente ao lado dela um medo gelado. A sensação de frio vai escorrendo, como se houvesse um sorvete infiltrado nas veias dele, vai escorrendo por dentro e quando a sensação chega na boca do estômago, ele se dobra para frente de dor. Os braços cruzados. Ele chega a se ajoelhar de dor e pavor. Ele tem pavor da mulher. Ela sempre vestindo branco, apesar dos dias serem devotados a outras cores, ela sempre com aquele cheiro de éter nos cabelos e nas mãos, ela sempre com aquele olhar de paciência exagerada e a voz falsa, modulada em uma educação na qual ele não acredita. Ele sabe que ela não é educada coisa nenhuma.

Ele não a suporta. Evita dormir na mesma cama para não ter pesadelos. Com variadas desculpas, ele adormece pela casa: no quartos dos meninos, na sala diante da tv, abraçado ao cachorro no corredor, na cadeira da piscina quando as noites são quentes. Ela não liga. Não dá a mínima se ele tenta se esconder pela casa. Os dois foram traçando os acordos em silêncio. Ninguém falou nada, eles não discutiram a relação e nem assinaram contratos. Tudo foi se passando com acertos imaginários e deu certo. Ela só fala com ele para perguntar se ele tomou os remédios e ele diz que sim. Ele só fala com ela para pedir o dinheiro semanal do mercado que ele faz, os cheques da escola dos filhos e mais nada. Está bom assim. Mais nada dela.

Ele sente que se a rotina for mantida pode ficar bem o resto de todos os tempos. Mas precisa cuidar dos detalhes para que a rotina não se quebre. Ele sabe que as coisas são frágeis e caprichosas e ele se mantém esperto para desentortar, a tempo, o que estiver fazendo curvas, saindo do prumo, inventando atalhos. Não, ele não pode seguir atalhos. Ficaria confuso, teria medo de novo, perderia a expressão verbal clara e pronto... seria a oportunidade de ouro para que sua mulher declarasse, clinicamente, que o problema voltara. Como médica, ela o mandaria para o hospital e para aquela sensação de nada e tudo se repetindo sem parar. 

Ele estava bem, precisava ficar assim, seguro. Mantinha os remédios, eles faziam parte da mesma harmonia que o recorte dos azulejos trazia para ele na cozinha. Os azulejos eram sempre os mesmos, não faziam graça, não mudavam, não inventavam surpresas desagradáveis. Eles sim, os azulejos eram confiáveis. Mas sua mulher não. Nunca. Por isso, a necessidade de sempre se apresentar a ela com tranqüilidade, com a fala clara, racional e sempre ter alguém por perto para evitar que ela o sabatinasse ou o deixasse muito esgotado, muito perdido.

Quando a casa assumia a quietude da hora do almoço, sem crianças, sem esposa, sem almoço, somente ele e o cachorro sentados em algum canto, ele sentia como se pudesse ficar bem para toda a vida, como se até se tornasse mais corajoso, mais forte, como se pudesse ser outro homem. Nesses momentos ele tem uma vaga proximidade com o homem que foi um dia. Um sujeito dinâmico, profissional respeitado, um homem seguro de si e do mundo. Até aquela tarde... 

Uma tarde que não começou assim, no meio da tarde, mas teve início como um dia qualquer, amanhecendo. Ele ainda não sabe explicar, apesar de todas as teorias que já ouviu de médicos e psiquiatras, mas nesse amanhecer ele acordou estranho como se não coubesse no próprio corpo e não reconheceu a própria voz quando falou com a mulher durante o café da manhã. Incomodado foi trabalhar e na primeira dificuldade que teve, no meio do escritório, ele não conseguiu pensar duas vezes e manter uma conversa racional com o diretor que, naquele momento, chamava sua atenção por um erro qualquer, uma bobagem que em outro dia ele apenas pediria desculpas ao chefe e adotaria métodos para que o erro não se repetisse. Enquanto o superior ia falando e apontando a falha que ele sabia, sim era uma falha dele, tudo foi ficando meio sem foco, opaco. Ele não sentiu nenhuma raiva ou vontade de agredir o colega. Ele apenas queria sair de si mesmo, deixar aquele corpo que não lhe cabia mais, sair como se pudesse brotar da pele um corpo novo, menor, maleável, um corpo que voasse.

Ainda procurando algum foco, ele foi se afastando da sala, dos colegas, do chefe, da moça que servia o cafezinho e que, assustada, perguntou se estava tudo bem, do porteiro que tentou ajudá-lo quando ele caiu na porta giratória. Ali, no meio daquela porta, com os pés travando o movimento, ele só teria que se levantar para sair da armadilha, ele só teria que alisar o terno, arrumar o paletó, ajeitar a gravata e dizer que iria para casa porque estava com enxaqueca, ele só teria que tomar uma atitude racional, uma só. E tudo estaria salvo, seu dia, seu emprego, seu casamento, seus filhos, sua sanidade. Todos esqueceriam essa manhã confusa porque todos desejariam também a rotina de volta, o colega de volta, o excelente funcionário de volta. Só ele não se desejava, realmente, de volta.

Ao invés de tirar os pés do caminho da porta giratória e deixar que as pessoas o ajudassem a se levantar e a se recompor, ele tirou a caneta do bolso. Uma caneta metida a tinteiro. Uma caneta com pedra de rubi na tampa. Um presente de natal que ele ganhara da mulher. Aproveitando a ponta muito fina, afiada, nascida para ser lâmina, ele enfiou a caneta na garganta. Várias vezes. Golpes secos. Golpes encharcados de sangue e tinta, tudo misturado e mais misturado ainda foi ficando ao desespero dos amigos do escritório e dos seguranças do local e aquela confusão que ele não sabe bem como terminou. Ele acha que quebraram a porta giratória e com a confusão também teve um pé quebrado.
Acordou no hospital. Engessado, com suturas no pescoço, encharcado de remédios. Acordava e dormia, sem reconhecer horas, dias, pessoas. Só teve alguma consciência quando já estava sem gesso, sem pontos, muitos quilos mais magro, comendo gelatina e olhando o jardim da casa de repouso. Aos poucos foi montando a história, tentando entender com o terapeuta o que havia acontecido e o que poderia acontecer diante da nova realidade que o dominara. 

Ele sabia que o corpo que naquele dia tentava sair, inflando as veias, esticando a pele, rompendo os ossos e estourando sua cabeça, havia saído. Ele era outro homem e agora só queria manter as coisas dentro de alguma ordem e tranqüilidade para nunca mais inchar por dentro e ter que sair de novo, outro corpo, menor ainda, mais novo e mais desconhecido. Por isso os azulejos eram tão importantes, confiáveis e necessários. Eles tinham sempre o mesmo número na cozinha, no banheiro e na área de serviço. Sempre a mesma cor e sempre os mesmos recortes. Eles nunca cresciam e nem se portavam de modo diferente como se não fossem azulejos e sim pratos ou panelas ou vassouras ou armários. Eles mantinham-se fiéis e verdadeiros ao que eram por essência: azulejos.

Era assim que ele tentava se manter, o mesmo que dera certo ontem e na semana passada e no mês passado. Se havia dado certo era só repetir a fórmula, seguir a receita e ficaria bem, cumprindo as tarefas que lhe cabiam. Levar as crianças para a escola, para a natação, fazer as compras, manter a água fresca para o cachorro, alimentá-lo, fazer um lanche na hora do almoço, descongelar o jantar e desaparecer da cozinha antes que a mulher chegasse vestindo branco. Não era difícil. Era apenas preciso. Números, horas certas, sem surpresas, sem barulho. Depois de deixar a louça limpa, os quartos arrumados e de colocar lírios nos vasos da sala, ele viu que o relógio determinava a hora de buscar as crianças na escola e deixá-las na natação. 

Fez isso e não ficou para esperar. Da natação, os meninos iriam caminhando para a casa, aproveitando o final da tarde. O certo, o já traçado, o combinado era que ele voltaria para casa e teria um tempo a mais com sua quietude. Mas havia algum fio descascado, alguma luzinha prestes a queimar, algum sinal de pane porque da mesma maneira que ele ficara meio perdido pela manhã, na porta da escola dos filhos, ele se sentia de novo confuso. Agora, andando pelo quintal e ouvindo a respiração arfante do cachorro que brincava com um osso roubado, ele conseguiu decifrar o motivo da confusão. Na noite anterior, enquanto tirava os pratos da mesa do jantar, sua mulher começara um discurso sobre a possibilidade deles venderem a casa e se mudarem para um apartamento. Ela falava e falava e falava mas ele só conseguia filtrar algumas palavras do meio daquela sopa sem sentido. Que seria mais seguro nos dias atuais morar em um apartamento, que deveria ser um apartamento grande, com lazer para os meninos... teria até espaço para o cachorro... e aí ela entortava um pouco a boca porque ela nunca quisera, de verdade, um cachorro na família e só deixou que ele ficasse com medo de que as crianças caíssem doentes de amor e saudade e com medo de que ele de alguma forma piorasse, surtasse de tristeza.

Ele entendia: para o gigante e seguro apartamento iria toda a família e até o cachorro... mas não iriam os azulejos dele, não iriam os passos contados que ele sabia o número exato, da porta da sala até o quintal, não iriam os cheiros do gramado molhado pela chuva e nem iriam as estrelas que ele ficava namorando, deitado ao lado da piscina. Não. Essa não era uma boa ideia. Ele tinha medo de que a mudança pudesse começar outro processo de insanidade. Ao mesmo tempo, se ele dissesse isso à mulher temia que ela entendesse que o processo já tivera início. Ele estava sob pressão. Isso era péssimo. Se ela percebesse, começaria a segui-lo pela casa, tiraria dele a tarefa de dirigir para as crianças e ele estaria a poucos passos do hospital de novo. Era preciso disfarçar, fingir normalidade.

Pensando em normalidade, ele se viu um menino de sete anos, andando numa feira de mãos dadas com a mãe. Ele adorava as quintas da semana porque elas eram dias de feira. Sempre. Acordava já contando o tempo para sentir no ar o cheiro do carrinho de feira que a mãe tirava da cozinha, um cheiro de frutas, verduras e peixes que se entranhara entre tantos anos de feira. Lá estava ele, camiseta e shortinho de algodão e um chinelo de borracha. Passando entre as bancas, ele se enchia de perfumes diversos: os temperos moídos, as pimentas, os legumes, as verduras frescas, as frutas cítricas e as doces, o cheiro do sangue nas carnes cortadas, o cheiro do que ele saberia mais tarde ser o cheiro do mar nas carnes dos peixes e o cheiro do pastel mergulhado no óleo quente. Pastel de palmito. Esse era o seu favorito e um copo de caldo de cana, a garapa...tão docinha e tão gelada! Mas, naquele dia, o menino não havia ido ao banheiro antes de sair de mãos dadas com a mãe e na feira ele experimentava o terror da ansiedade. Desejava que tudo fosse rápido, bem mais rápido que o normal. Antes mesmo de estarem no meio das compras, ele sentiu que a vontade de ir ao banheiro era intensa. Não havia como pedir para voltar e nem como usar algum banheiro em uma feira de rua. Foi andando, buscando um controle qualquer, tentando distrair-se com a gritaria dos feirantes, mas estava passando mal, suando, sentindo-se fraco. A mãe nada percebeu e parecia andar em câmera lenta, bem mais vagarosa, bem mais indecisa se levava mamão ou manga, escolhendo sem fim entre um produto e outro. E de repente, ele percebeu que o amor que sentia pelos dias de feira se transformava em ódio. Ele odiava aqueles cheiros misturados, os gritos de ofertas e descontos, as pessoas com sacolas e carrinhos andando lentamente, o chão sujo, com cascas de frutas, sangue das carnes e óleo recém-queimado. Se pudesse, ele abriria fogo contra a feira, mataria a todos e queimaria todas as barracas. Experimentando o sabor do ódio ele viu que estavam diante da banca do pastel e do ritual final da feira. A mãe pediu o de palmito para ele e o de queijo para ela. O menino respirou fundo mas já era tarde. Ele havia urinado pernas abaixo, fazendo uma poça entre os chinelos de borracha. Sem a sensação de urgência, ele conseguiu fingir normalidade. Afastou-se uns passos da poça e rezou para que a mãe não percebesse o short azul marinho e as pernas molhadas. A prece foi boa. Eles comeram o pastel e foram embora. Em casa, ele teve tempo de ficar no quintal, ao sol, até tudo ficar seco. Até tudo ficar seco. Era isso. Assim deveria agir. 

À noite, quando sua mulher chegou encontrou a mesa posta. Eles jantariam juntos, com os meninos. Um assunto foi se juntando a outro até que ele chegou ao que realmente queria falar. Que havia pensando sobre a hipótese de uma mudança para um apartamento mas estava decidido, e aí caprichou no tom para dizer a palavra decidido, de que a casa onde moravam era um palacete perto desses apartamentos modernos, sem espaço e de pouco conforto. A questão segurança não era tão garantida em apartamentos. Os jornais provavam, com as notícias de invasões a condomínios e quando tentava achar mais argumentos foi surpreendido pela participação dos meninos na conversa: eles não queriam mudanças. Adoravam a casa, adoravam a escola do bairro e os amigos. Eles não queriam ir para apartamento algum. A mulher suspirou. Estava cansada e disse que tudo bem, se era assim, que ficassem então na mesma casa. Terminou a discussão declarando-se voto vencido: três contra um. Mas estava mesmo exausta. Iria subir para o quarto.

Fim do jantar. Enquanto ele lavava a louça soube que havia conseguido. Fingindo normalidade, ela não percebera a poça de ansiedade que havia aos pés dele, nem suas pernas geladas, nada! Isso não era apenas uma vitória sobre a questão mudança para apartamento. Era a descoberta de uma tática perfeita para a guerra diária. Se ele conseguisse fingir sempre normalidade, independente de quais poças estivessem se formando ou do que houvesse escorrendo, involuntariamente, de dentro dele, havia uma chance de parecer normal, uma chance de ser normal. Nessa noite, ele só conseguiu adormecer no meio da madrugada. Estava feliz demais para dormir. Precisava experimentar seguidas vezes a alegria e a confiança que a descoberta trouxera. Seria assim. Um fingidor de normalidade, situação atrás de situação...até ser um mestre total na arte de fingir, encenar, ser além e aquém do realmente sentisse ser. Assim estaria a salvo. Da mulher e das confusões que pudessem surgir. Ele tinha agora um salvo conduto. Enquanto os azulejos seriam sempre os mesmos e os dias sempre exigiram as mesmas cores, ele andaria por aí, tranquilo, deixando seus passos molhados invisíveis. Ele havia descoberto como ser um como eles eram, como ser um entre tantos que agiam da mesma forma. Ele só precisava fazer de conta.

ANA CARDILHO (conto premiado no Prêmio Sesc de Contos Machado de Assis, 2007)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013


                A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS





O que se deve fazer se, durante a travessia de um farol aberto para pedestres, seus sentidos desligam, cai sobre você um “apagão” muito rápido mas, ao mesmo tempo, tão intenso que quando você se dá conta já foi ao chão? 

Quando seus olhos conseguem se firmar e ver alguma coisa, você percebe que está ajoelhado sobre a faixa de pedestres, com os óculos no asfalto, a bolsa ainda segura pela mão esquerda, e vendo pessoas de boa vontade que tentam ajudar. As pessoas querem levantá-lo, tirá-lo do meio da faixa de pedestres porque o farol vai abrir para os carros, as pessoas querem que você se recupere e volte a andar, siga seu caminho, porque, afinal, é muito incômodo ver alguém desabando, indo ao chão. Dá medo no outro, gera desconfiança, insegurança. Faz com que todos nós lembremos de que “tudo pode estar por um segundo”. 

E sempre está. A cada minuto estamos a um minuto a menos de nossa existência física neste planeta. Apagar do nada, no meio da rua, faz com que você volte para casa com um pouco de medo e se questione: a quantas anda minha saúde física, mental, emocional? Ninguém apaga do nada, por apagar. Algum motivo existe para que os circuitos desliguem e a queda seja inevitável. Como se os disjuntores da alma estivessem com sobrecarga e ploct... cai a chave. Isso me aconteceu algumas vezes e, independente dos meus exames clínicos estarem ok, hoje a queda se repetiu. Como eu nunca espero desligar, sempre fico surpresa. Depois de me levantar, agradecer a ajuda das pessoas, conferir os estragos nos joelhos e ter certeza de que, desta vez, não quebrei nenhum tornozelo, fiquei pensando no que eu estava, justamente, pensando no instante em que o disjuntor me desligou. Estava pensando nesta espaço, nesta coluna, neste jornal, em você, leitor, que eu não conheço mas com quem me sinto tão familiarizada, tão à-vontade para este encontro semanal. 

Estava pensando que hoje perguntaria ao nosso espelho mágico se há neste mundo alguém que não possa mudar o jogo, virar o placar, reinventar-se, transformar qualquer situação em algo melhor. Elaborei essa ideia e ela puxou na minha memória o livro que eu traria para vocês: “A Menina que Roubava Livros”, de Markus Zusak, Editora Intrínseca. Pensei no livro, pensei na personagem principal e quando vi estava de joelhos, confusa, tentando ligar as luzes de emergência. O curioso é que a personagem principal é a narradora da história que é simplesmente, nada mais, nada menos, que a Dona Morte. Inevitável pensar na Dona Morte como ela é caracterizada nos gibis da Turma da Mônica, de Maurício de Souza. Uma mulher que se veste toda de preto, anda com uma ceifadora, perde a hora, é atrapalhada e sempre deixa a vítima escapar. 

A Dona Morte de “A menina que Roubava Livros” não perde a hora, trabalha incansavelmente, pois está no meio da Segunda Guerra Mundial e recolhe muitas almas, o tempo todo. Mas, ela não é assustadora. Ela é poética, um pouco melancólica apenas. Trabalha demais, não descansa, não pode tirar férias. Para se distrair, ela coleciona retalhos de céu, as cores presentes no instante em que ela recolhe cada alma, e ela diz: “pessoalmente, gosto do céu cor de chocolate. Chocolate escuro, bem escuro. As pessoas dizem que ele condiz comigo. Mas, procuro gostar de todas as cores que vejo – o espectro inteiro. Um bilhão de sabores, mais ou menos, nenhum deles exatamente igual, e um céu para chupar devagarinho. Tira a contundência da tensão. Ajuda-me a relaxar.”. 

Pois bem, o que a “Menina que Roubava Livros” tem com a pergunta para nosso espelho mágico? Tudo. O autor, o australiano Markus Zusak é um jovem australiano que só escrevia histórias para adolescentes e quando ousou em seu primeiro romance “adulto”, o livro simplesmente estourou e ficou na lista dos “mais vendidos” de todo o mundo. Além da Dona Morte, o romance traz personagens pelas quais você se apaixona e quer ir morar junto, fazer família, nunca mais se separar. Todos os personagens passam por transformações heroicas, especialmente para a época, em meio a bombardeios, numa cidadezinha alemã, sendo, muitos deles, contrários ao Nazismo. A garotinha Liesel rouba um livro, “Manual do Coveiro”, e Dona Morte percebe. Esse ato faz com que a menina não lhe saia da cabeça e pelos olhos da “mais temida das gentes”, conhecemos a cidadezinha, os pais adotivos de menina Liesel, seus amigos, o judeu que eles salvam num porão, os livros que ela rouba ou empresta, seus pequenos sonhos e imensas dúvidas, pertinentes a todos nós. 

Todos somos Liesel, todos enfrentamos bombardeios e temos segredos escondidos no porão. Li “A Menina que Roubava Livros” tantas vezes quantas já sofri apagões, cai  e me machuquei feio. E cada vez em que leio me surpreendo mais um pouco. Por causa desta nossa conversa, da minha queda de hoje, lerei mais uma vez. Dona Morte é uma narradora de mão cheia. Encerro com as palavras de quem coleta alminhas por aí, coleciona cores, céus e histórias de meninas que salvam diversas almas da tristeza apenas com palavras. As tais das mágicas e sagradas palavras. “ Primeiro as cores. Depois, os humanos. Em geral, é assim que vejo as coisas. Ou, pelo menos, é o que tento. Eis um pequeno fato: você vai morrer... Isso preocupa você? Insisto. Não tenha medo. Sou tudo, menos injusta.”. 

ANA CARDILHO

terça-feira, 13 de agosto de 2013


                    
                      CLUBE DOS SOBREVIVENTES

Qual é o limite máximo que devemos suportar? Até onde devemos prosseguir, insistir, tentar?  Quanto de dor, quanto de confusão, uma pessoa pode, ou deve, aguentar antes de pedir socorro, antes de jogar tudo para o alto, antes de buscar outros caminhos, jogar a toalha e dizer: não consigo mais?

A teimosia pode ser vista como uma vantagem porque a pessoa se levanta, a cada tombo, e segue em frente, mesmo que esteja caindo aos pedaços. Por outro lado, teimosos podem ser vistos como pessoas que perderam o momento de sair do trem antes dele se espatifar. Ou pessoas que se prenderam demais a situações que já não davam pé. Quem tem razão? Quem está certo? O teimoso que não desiste ou aquela pessoa que muda os planos diante da primeira adversidade?

Sinceramente? Eu não sei a resposta e precisaria de muitos espelhos mágicos para chegar a um consenso, a um conselho que valesse a pena ser ouvido. Sou do reino dos teimosos. Não desisto fácil, mas percebo que, muitas vezes, perco o ponto da hora certa de desistir. Como se tudo ficasse embaçado demais e todas as referências se misturassem. Nesses momentos, faço um voo às cegas, nada de instrumentos, nada de voz da torre.  Apenas a velocidade no máximo, sem nada ver pela frente, e uma certeza: a qualquer instante, vou bater. Como consegui me manter viva até agora,  considero que no último instante sempre invento alguma solução e os instrumentos voltam a me dar as coordenadas, a voz da torre aparece, e é possível pousar em segurança, ou com menos danos possíveis.

Um livro muito interessante, que se propõe a contar os “segredos de quem escapou de situações-limite e como eles podem salvar a sua vida”, é o “Clube dos Sobreviventes”, do jornalista norte-americano Ben Sherwood, também autor do beste seller “Morte e vida de Charlie St. Cloud”.

O autor entrevistou pessoas que estiveram muito próximas da morte, além de psicólogos e peritos de diversas áreas, e ele mesmo fez treinamentos militares e cursos sobre acidentes de avião. Tudo para tentar responder às perguntas: “por que algumas pessoas vivem e outras morrem? Como é que algumas pessoas sobrevivem aos mais difíceis desafios e outras, não? Por que alguns se recuperam das adversidades enquanto outros desabam e se entregam?  Os casos contados em “Clube dos Sobreviventes” são histórias de pessoas comuns que se reergueram depois de situações extremamente difíceis, desde ter uma agulha de tricô fincada por acidente no coração, a ser derrubado da bicicleta, atropelado, e esmagado, por um caminhão, ou ser uma mulher de 66 quilos capaz de erguer um carro de 1,5 tonelada para salvar a vida do filho.

Diz o autor Ben Sherwood que há 3 regras para a sobrevivência: “Todo mundo é um sobrevivente, nem tudo é relativo e você é mais forte do que imagina”. Ele segue nos contando sobre a magia do número 3, segundo um curso de sobrevivência da Força Aérea dos EUA. A regra do 3 determina que NÃO se pode sobreviver: 3 minutos sem ar, 3 horas sem abrigo em condições extremas, 3 dias sem água, 3 semanas sem comida, 3 meses sem companhia ou amor e, especialmente, não sobrevivemos nem 3 segundos se não tivermos coragem e esperança. Aí entra o começo da nossa conversa sobre ser teimoso ou não, insistir ou não. Podemos entregar tudo, menos nossa coragem e esperança. Querem nossos bens? Querem nosso dinheiro? Querem nossa dignidade? 

Vamos entregando, negociando, retendo o que for possível e soltando o que mais nos pesa do que ajuda. Mas, precisamos ser teimosos ao extremo para não perdermos a coragem e a esperança. Tanto faz se você está debaixo das rodas de um caminhão ou na beirada de um desfiladeiro emocional. Os medos são os mesmos: vamos sobreviver? Perguntar se haverá amanhã depois de quase congelar escalando uma montanha equivale à mesma ansiedade para quem se pergunta se haverá amanhã depois daquele trauma, daquela dor que parece além do possível. E se você está vivo, lendo o final deste artigo, é um sobrevivente: filho, neto e bisneto de outros sobreviventes. Se você está em pé até agora significa que ainda não ficou 3 segundos sem coragem e esperança. Ótimo. Com essas duas qualidades você pode preencher os outros itens da tabelinha mágica do número 3. As crises são inevitáveis. Elas virão mais cedo ou mais tarde porque estamos vivos e isso faz parte do aprendizado. E quando a pior delas vier não se esqueça de manter, a cada 3 segundos, sua coragem e esperança.

Ana Cardilho

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O HOMEM MAIS VELHO DO MUNDO QUER MORRER



Notícia publicada em 31 de agosto de 2006: 
“O Homem mais velho do mundo quer morrer. Emiliano Mercado del Toro tem 115 anos. Porto-riquenho, foi combatente da Primeira Guerra Mundial. Don Emiliano, como é conhecido Mercado del Toro, parou de fumar quando completou 90 anos. Ele não sofre de problemas de saúde e o médico garantiu: Don Emiliano vai morrer de velhice.” 
A notícia acima é verdadeira. O texto abaixo, ficção:

O HOMEM MAIS VELHO DO MUNDO QUER MORRER
            Todos os dias acordo, abro os olhos e tento perceber se já morri. São quinze anos mantendo o hábito. Quando vejo que não morri ainda, faço minha oração matinal. Agradeço à vida mas peço pela morte. Tenho 115 anos. Quando fiz 90 parei de fumar. Não queria ter uma morte dolorosa e adotei hábitos mais saudáveis. Cortei o álcool também. Estava engordando e não quero que meu caixão pese demais. Já basta o peso dos meus ossos velhos, das minhas recordações de centenário e dos meus erros e pecados. Esses sim!  Vão pesar toneladas nos ombros de quem carregar o caixão.
            Em mais de 100 anos de vida dá para acertar muito e errar ainda mais. Vi duas guerras, lutei, apanhei, fui ferido, matei e carrego meus mortos. Todos, a esta altura, estão mortos: meus pais, irmãos, mulheres, filhos, amigos. Os netos envelheceram e talvez partam antes de mim. Todos morrem antes. Até os 90 anos não perdia um guardamento. Noites em claro com café bem doce e companhia. O morto não deve ficar só. É preciso que ele ouça piadas na madrugada e tente rir da própria morte. É preciso que o morto saiba o que as pessoas realmente pensavam sobre ele. Só daí a alma pode partir lavada e santificada. Fico aqui me perguntando: quem é que vai no meu velório se quase todos que amei e que tiveram alguma consideração por mim estão mortos? Talvez a imprensa vá. Afinal, sou o homem mais velho do mundo e isso rende manchete. Algum político também irá, tentando tirar as eternas casquinhas de situações alheias. E no mais, os curiosos. É preciso ter certeza quando a vida se acaba. Só que a minha não acaba.
            Nos últimos anos tenho falado pouco. Nenhum assunto é eterno e logo me canso porque tenho a sensação de que já sei o final da história. De qual história? De quase todas. Aos 115 anos, as surpresas rareiam e os ciclos se fecham, sempre muito parecidos. Nem mesmo a tecnologia e suas promessas de modernidade e rapidez me seduzem. O que quero eu com a rapidez? Não morro mesmo. Tudo pode esperar, tudo pode ser mais lento e compassado.
            Meu médico andou dizendo que tenho saúde de ferro e que só vou morrer de velhice. Ele é um sádico. Morrer de velhice? De que jeito? Velho já sou. Ouço mal, enxergo mal, tenho dor nas juntas, minha pele é seca, meus cabelos caíram, os dentes se foram, não faço sexo, durmo mal e minhas costas estão arqueadas. O que mais falta?
            Falta acabar a promessa, bênção ou maldição, já nem sei como chamar essa capacidade de ver janeiros que fui desenvolvendo. Eu não sei quando vai acabar mas sei quando começou.  Eu tinha 10 anos. Gostava de ficar rodando pelo mato, perto do lago, espiando os bichos. Até que um dia o tempo fechou e uma tempestade caiu de repente. Chovia tanto que não dava nem pra tentar voltar para casa. Não dava nem para ver o caminho. Fiquei quieto, embaixo de uma árvore olhando o aguaceiro até que um raio atingiu a árvore e eu   desmaiei. Não sei quanto se passou até que a chuva acabasse, até que dessem conta da minha ausência em casa e me encontrassem no meio de uns troncos queimados, no meio do mato. Só me lembro que estava acordando e tudo cheirava a hospital. Ouvi alguém, que hoje imagino um médico, dizer para meus pais: “O menino teve sorte. Se não morreu desta vez, não morre nunca mais!”.
            Não morre nunca mais, não morre nunca mais... A frase ficou na minha cabeça e virou verdade. Nos combates nas grandes guerras eu sabia que poderia ser ferido mas tinha a certeza de que não morreria. Doenças nunca me assustaram porque no meio da febre alta vinha a frase: “não morre nunca mais, não morre nunca mais”. E eu não morro. São 115 anos até aqui. É tempo demais pra agüentar em um corpo que envelheceu apesar de não morrer.
            Muita gente quer saber a receita da longevidade. Fazem romarias, caravanas, mandam e-mails para a prefeitura da minha cidade. Todos querem a receita. Sugiro que em dia de tempestade fiquem embaixo de uma árvore no meio do descampado e esperem que um raio lhes caia na cabeça. Se funcionou comigo, quem sabe pode dar certo para outros também...
            Daqui a pouco vou dormir. Deito-me cedo apesar de dormir mal. É um sono sem qualidade porque não alivia as dores do meu corpo e eu quase não sonho mais. Na verdade há um sonho, adormeço pensando, imaginando, desejando que amanheça e eu não acorde. Daí sim, vai ser dia de festa! Vou andar leve, solto, vou dar pulos de alegria. Vou descobrir os segredos da morte: se dói, o que sentimos, quem encontramos, se vemos a face de Deus. E se os espíritas estiverem certos e existir reencarnação vou pedir um tempo, afinal já vivi duas vidas seguidas com meus 115 anos.
           Não estou deprimido por desejar a morte. Quero apenas fechar um ciclo natural: começo, meio e fim. Não posso ficar preso no meio do tudo, no meio do nada.  Mas, amanhã é outro dia. Tomara que seja o meu dia. Afinal, se a esperança é a última que morre, eu vou antes dela!!

ANA CARDILHO