sábado, 9 de julho de 2016

DE NÓS EM NÓS



"...e foram virando peixes, virando conchas, virando seixos, virando areia, prateada areia, com lua cheia e à beira-mar..." 
Ela só sabe esse verso da música que chamam de Mar e Lua.  Ela só sabe que não adiantaria saber o restante nem diversidade alguma de letras e sons. Ela só sabe que vai entrar no mar. E ela não sabe nadar. Nunca soube e pior agora que decidiu não ter mais medo do que pode acontecer. 

Vai acontecer. Ela sabe, é inevitável, afinal. Sempre soube que o mar a chamava com esse canto que dizem ser de sereia mas ela duvida porque ouve uma voz bem distante de como cantaria uma sereia em madrugada de lua cheia e à beira-mar.

A voz que ela vai seguir entrando no mar sem saber nadar é grave. Como são agora seus gestos. Graves. Definitivos. Tirar a roupa, abandonar os sapatos, soltar os cabelos, soltar as amarras que ainda poderiam existir, longínquos pedaços de cais, recortes do que foram ilhas, portos, pedaços de terra. Não há mais nó que a suporte. Só o mar pode marcar o passo com a indecisão de um som que não sabe se vai ou se volta e é no meio dele que tudo pode ser achado para nunca mais ser perdido ou nada pode ser perdido para todo o sempre encontrado. Amém.


Amém ela diz e entra no mar. A voz mais nítida, agora um lamento cheio de areia, cheio da areia que ela vem trazendo nas mãos fechadas que se recusam a nadar. Nem tenta. Não sabe mesmo. Quanto mais fundo, mais coberta de água, mais selada de sal, mais levada para o fundo, mais perto da voz grave e doce e seus pulmões estourando de maresia, inchando o que ela ainda pensava saber das palavras. 

Ela sabe que vai ver o dono da voz e imagina que ele tenha no peito um nó bem atado, balso, balsa, nó de capitão afogado. Ela sabe que ele terá os olhos azuis, excessos de algas, e terá na pele cicatrizes de conchas. Ela sabe que ele a espera. Há um lugar para seu corpo se decompor junto ao dele sob o mesmo nó nunca partido. E só o nó há de ficar, dessas teimosias que não perdem a hora, dessas insistências que atravessam anos e marés e sempre chegam. Dia atrás do outro. E chegam. 

Ela sabe que o amante morto em nó está mais vivo do que todos os deuses marinhos e entidades do sal e orixás da areia e divindades que gostem de estrelas e entendam de latitudes e direções. Ela não sabe andar na terra e não sabe nadar. Mas pode voar depois do primeiro abraço balso, dos primeiros apertos dos nós dos dedos das mãos enrugadas do dono da voz. Trovão feito sino debaixo d´água. Destino de barca que foi mulher por engano de cálculos e agora recebe o batismo do nome de seu nome. 

Enfim, náufragos. 
Sem socorro e bem mais sós que todo o resto do mar e o resto do mundo e o resto dos restos dos restos dos restos... 
Que só isso há de restar: um nó de marinheiro.

ANA CARDILHO 
2007















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