quarta-feira, 6 de julho de 2016

PONTO FINAL

Sabe por que resolvi escrever, mais uma vez, para você? Porque esta será a definitiva, derradeira e, fim de conversa, eu juro, última carta. É sério. Imagino você rindo, duvidando, suspirando e fazendo caretas. Tudo bem, pode rir. Sou mesmo seu palhaço preferido, o bobo que faz sua corte há vinte anos. Tem noção disso? Há duas décadas estamos neste espaço vago. Há vinte anos há uma chuva parada entre nós.
Eu sei que este desabafo será mais um entre todas as cartas que mandei, você recebeu, leu e silenciou. Entendo. Você faz isso para não me dar certeza de que a carta chegou. Truque barato. Assim, estou sempre na dúvida. Talvez eu goste e, pior, necessite da dúvida. Por isso só mando cartas. Se mandasse e-mail teria certeza do seu desprezo. Mas, a carta não. A carta pode ter sido extraviada em algum lugar do caminho. Pode existir uma gangue de carteiros apaixonados por você que jogam fora todos os meus envelopes selados. Eles reconhecem letra e nome no remetente e não perdem tempo: rasgam a carta e jogam os pedaços aos poucos, pedaços de pão de João e Maria. 
Lembra dessa história? Na única vez em que pensamos na absurda e improvável hipótese de termos filhos combinamos que teríamos dois: João e Maria. Não seriam abandonados em nenhuma floresta e nem torturados por uma bruxa. faríamos com quem fossem crianças legais, tranquilas... só para compensar as crianças neuróticas que nós dois sabemos que fomos.
Eu dizia que preciso da dúvida, preciso me enganar e achar que talvez esses anos todos você não tenha recebido minhas cartas. Faz quanto tempo que não nos vemos nem nos falamos? Cinco anos? Já? Pois é, mas as notícias sempre chegam. Alguns amigos em comum fazem questão. Ouço seu nome na roda, faço cara de total desinteresse mas afio os ouvidos. E vou sabendo: pelas mulheres que você engordou um pouco e está malhando, que mudou a cor dos cabelos pra esconder os brancos, mas que sua pele está ótima, que não come mais carne e que era lindo o vestido usado na cerimônia do segundo casamento. Pelos homens, que seu novo marido tem muito dinheiro, que só anda em carro importado, que vocês moram em uma cobertura e que o maridão fez um milionário seguro de vida em seu nome. 
Impressões. Fico quieto no meu canto, mexendo em cds, preparando outra bebida, fingindo interesse nos vizinhos do prédio ao lado. Os amigos conversam, sempre falam em você na minha frente, sem cerimônia. Não ligam ou não percebem minha angústia. Vou ficando amuado, triste, o jantar cai mal e quase sempre vou embora antes de ficar bêbado o suficiente para dar vexame na casa de alguém, antes de cair chorando no meio da conversa e dizer a eles mas que merda, não respeitam minha saudade? Não sabem que nesses anos todos eu ainda sou maluco por você? Aposto que se fizesse isso, eles dariam muita risada, diriam que a piada estava ótima e continuariam falando e falando sobre você e seu novo casamento e sua vida de viagens exóticas e milionárias. Os amigos não são cruéis, eles apenas não podem imaginar o que se passa comigo. Sou o tipo calado. Só sei escrever cartas a você, com confissões de amor, arrependimento, saudade... cartas sem resposta, sem ecos, sem som.
Domingo passado, no meio do almoço, na casa da sua melhor amiga e minha sócia, soube que você está grávida. Fizeram um brinde a isso... levantaram as taças, disseram seu nome com votos de felicidade. Só então perceberam que eu não estava brindando. Ei, você não ouviu? Ela está grávida! Não é demais? Vamos brindar, pega a taça aí, deixa de preguiça. Todos se levantaram, brindaram de novo e eu fiquei como estava, brincando de estátua. Eu sabia que precisava me mexer, que deveria fazer alguma coisa além de ficar ali, com os óculos quase caindo da ponta do meu nariz, as mãos no colo e aquela cor de cera na minha cara. Eu precisava levantar antes que vomitasse no meio da mesa, no meio da travessa de macarrão. Eu precisava ir ao banheiro e ter a mais violenta diarreia que uma pessoa pode ter antes de morrer. Eu precisava pular num rio lamacento e ficar preso lá embaixo. Eu precisava que um boeing batesse no meu corpo, me fizesse em pedaços. Eu precisava sentir alguma coisa, dor, nojo, medo... qualquer sensação que me tirasse da cantilena que se repetia e se repetia e se repetia: você está grávida!
Não bastou que se casasse pela segunda vez e seu marido fosse jovem, esportista e milionário? Eu já estava morto diante disso. Você precisava mesmo engravidar desse cara que deve usar perfumes importados, camisas inglesas e sapatos italianos? Precisava ter um filho? Um bebê, uma criança? Você não teve filhos do primeiro marido e nem dos seus sei lá quantos amantes. Por que um filho agora? Pelas minhas contas você está com quarenta e um anos. É perigoso. É gravidez de risco. Tinha que ser meu esse seu filho. Como combinamos, como planejamos, como prometemos, João e Maria, lembra? 
Seus maridos, namorados, casos... eu poderia ignorar e mandar minhas cartas e manter meu amor. Se eles lessem minhas declarações, inclusive, seria um ganho. Saberiam da minha existência e que eu sempre estarei acima de tudo. Eles passam, todos. Eu não. De um modo ou de outro, eu tenho certeza, sempre estive presente. Mas, um filho é diferente. Um não nosso filho muda tudo e eu não quero que essa criança, mais tarde, venha a ler minhas cartas e não quero que ela saiba que eu deveria ter sido o pai e que o pai biológico dela está no lugar errado, família errada, tempo errado. 
Digo tempo errado e emperro, patino e já não sei se vale a pena continuar esta carta. Seu filho não está no tempo errado, afinal. Eu é que estou. Estou sempre atrasado em relação a você. Quando a conheci e me apaixonei foi só o começo desse relógio desordenado que nos dá o tom. Eu estava casado, muitos anos de relação estável e segura, e não tive coragem para mudar minha vida e ficar com você. Essa foi a primeira vez em que nos neguei. Foram três vezes, três negativas. A segunda, quando meu casamento, nem tão sólido assim, acabou. Claro que pensei em procurar por você. Fiz planos, bolei estratégias. Estava com tudo pronto dentro da minha cabeça, nossa vida em comum. Poderíamos nos encontrar sem culpas, em público. Finalmente seríamos namorados! Só me esqueci de um detalhe: contar a você. E quando vi era melhor silenciar. Você estava feliz com seu primeiro marido. Não havia lugar para mim. Fora as cartas que mandei, por hábito, fiquei distante.
Até que chegamos bem perto de uma chance. Lembra de um jantar com cara de encontro entre velhos e saudosos amigos? Um restaurante deserto, à noite. Peixe e vinho. Eu estava sozinho, sem nenhum namoro, você recém-separada. O que poderia nos impedir? O que poderia atrapalhar? Aquela era a hora para, de uma vez por todas, assumirmos uma relação. Não era? Não. Não era. Descobrimos isso de forma rápida e dolorosa. Você, afinal, não estava tão separada assim e eu não estava tão sozinho como tentava acreditar. Depois da frustração nunca mais tentamos um contato, nem nos falamos, nem nos vimos. É estranho. Parece que morremos um para o outro.
Chego a duvidar da minha sanidade nestes momentos em que teimo em escrever cartas para você. Fico horas pensando nos detalhes de tudo que deu errado e imaginando se haveria algum jeito de voltar o tempo ou então de avançá-lo o suficiente para você se esquecer da minha covardia e me dar uma nova chance. Mas, agora... você grávida... não haverá chance alguma para mim. Mesmo que seu maridão de ouro não dure muito no cenário, ainda assim haverá o filho e uma ligação contínua. Entre nós não há nada, não é?  Além das minhas idéias absurdas de comovê-la, além dos meus fantasmas, da minha saudade sufocante, paralisante, não há nada. 
E é incrível como não nos encontramos, por acaso, em algum restaurante, porta de cinema, casa de amigos. Nunca nos vemos! É como se houvesse um coreógrafo cuidando para que nossos passos estejam sempre ao contrário. Sou sua noite mais assustadora, com tempestade, monstros e sem luz. Você é o dia claro, quente, que teima em me acordar, que insiste em me fazer ver que estou vivo.
Será que antes de sumirmos deste planeta teremos um momento, um instante, um minuto que seja para nos olharmos como antigamente? Ou vou morrer sem saber, ao certo, o que você pensa sobre meu amor? Gosto de dizer que entendo seu silêncio, sua ausência. Mas a verdade é que ando cansado. O tempo passando e cada vez menos chance de acontecer um encontro, um entendimento entre nós.
Esta é a última carta. Se você não a responder, nem mandar algum sinal de vida, vou poupar a gangue dos carteiros de trabalhos futuros. Eles podem ficar com você. Seu marido “barbi” pode ficar com você. Seu filho mimado (já tenho implicância com o bebê) pode ficar com você. Só eu não vou ficar, apesar de conhecer a textura da sua pele um milhão de vezes mais que todos os seus amantes juntos. Desafio qualquer um a reconhecer seus cheiros, de olhos fechados, como eu garanto que posso fazer. Conheço todos os nuances da sua voz. Sei dizer, ouvindo um simples alô, se você está alegre ou aborrecida. Mas eu não vou ficar com você.
Sou lento. Acho que só agora me dou conta de que sua decisão foi tomada há anos e eu fiz de tudo para não acreditar e agir como se estivesse sempre esperando você telefonar, escrever ou aparecer, de repente, na porta da minha casa. Mas você não vai aparecer, não é? Eu sei que não vai...  Por essa certeza, sigo o conselho secular de minha avó. Ela bordava com ponto em cruz e dizia que o mais importante era o nó antes e depois do traçado, o ponto final. Sem ele todo o desenho poderia ser perdido. E, depois de tanto tempo, fica aqui o fim do nosso bordado. Depois de tantos nós, chegamos ao ponto final.
ANA CARDILHO

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