quinta-feira, 6 de junho de 2013

O HOMEM MAIS VELHO DO MUNDO QUER MORRER



Notícia publicada em 31 de agosto de 2006: 
“O Homem mais velho do mundo quer morrer. Emiliano Mercado del Toro tem 115 anos. Porto-riquenho, foi combatente da Primeira Guerra Mundial. Don Emiliano, como é conhecido Mercado del Toro, parou de fumar quando completou 90 anos. Ele não sofre de problemas de saúde e o médico garantiu: Don Emiliano vai morrer de velhice.” 
A notícia acima é verdadeira. O texto abaixo, ficção:

O HOMEM MAIS VELHO DO MUNDO QUER MORRER
            Todos os dias acordo, abro os olhos e tento perceber se já morri. São quinze anos mantendo o hábito. Quando vejo que não morri ainda, faço minha oração matinal. Agradeço à vida mas peço pela morte. Tenho 115 anos. Quando fiz 90 parei de fumar. Não queria ter uma morte dolorosa e adotei hábitos mais saudáveis. Cortei o álcool também. Estava engordando e não quero que meu caixão pese demais. Já basta o peso dos meus ossos velhos, das minhas recordações de centenário e dos meus erros e pecados. Esses sim!  Vão pesar toneladas nos ombros de quem carregar o caixão.
            Em mais de 100 anos de vida dá para acertar muito e errar ainda mais. Vi duas guerras, lutei, apanhei, fui ferido, matei e carrego meus mortos. Todos, a esta altura, estão mortos: meus pais, irmãos, mulheres, filhos, amigos. Os netos envelheceram e talvez partam antes de mim. Todos morrem antes. Até os 90 anos não perdia um guardamento. Noites em claro com café bem doce e companhia. O morto não deve ficar só. É preciso que ele ouça piadas na madrugada e tente rir da própria morte. É preciso que o morto saiba o que as pessoas realmente pensavam sobre ele. Só daí a alma pode partir lavada e santificada. Fico aqui me perguntando: quem é que vai no meu velório se quase todos que amei e que tiveram alguma consideração por mim estão mortos? Talvez a imprensa vá. Afinal, sou o homem mais velho do mundo e isso rende manchete. Algum político também irá, tentando tirar as eternas casquinhas de situações alheias. E no mais, os curiosos. É preciso ter certeza quando a vida se acaba. Só que a minha não acaba.
            Nos últimos anos tenho falado pouco. Nenhum assunto é eterno e logo me canso porque tenho a sensação de que já sei o final da história. De qual história? De quase todas. Aos 115 anos, as surpresas rareiam e os ciclos se fecham, sempre muito parecidos. Nem mesmo a tecnologia e suas promessas de modernidade e rapidez me seduzem. O que quero eu com a rapidez? Não morro mesmo. Tudo pode esperar, tudo pode ser mais lento e compassado.
            Meu médico andou dizendo que tenho saúde de ferro e que só vou morrer de velhice. Ele é um sádico. Morrer de velhice? De que jeito? Velho já sou. Ouço mal, enxergo mal, tenho dor nas juntas, minha pele é seca, meus cabelos caíram, os dentes se foram, não faço sexo, durmo mal e minhas costas estão arqueadas. O que mais falta?
            Falta acabar a promessa, bênção ou maldição, já nem sei como chamar essa capacidade de ver janeiros que fui desenvolvendo. Eu não sei quando vai acabar mas sei quando começou.  Eu tinha 10 anos. Gostava de ficar rodando pelo mato, perto do lago, espiando os bichos. Até que um dia o tempo fechou e uma tempestade caiu de repente. Chovia tanto que não dava nem pra tentar voltar para casa. Não dava nem para ver o caminho. Fiquei quieto, embaixo de uma árvore olhando o aguaceiro até que um raio atingiu a árvore e eu   desmaiei. Não sei quanto se passou até que a chuva acabasse, até que dessem conta da minha ausência em casa e me encontrassem no meio de uns troncos queimados, no meio do mato. Só me lembro que estava acordando e tudo cheirava a hospital. Ouvi alguém, que hoje imagino um médico, dizer para meus pais: “O menino teve sorte. Se não morreu desta vez, não morre nunca mais!”.
            Não morre nunca mais, não morre nunca mais... A frase ficou na minha cabeça e virou verdade. Nos combates nas grandes guerras eu sabia que poderia ser ferido mas tinha a certeza de que não morreria. Doenças nunca me assustaram porque no meio da febre alta vinha a frase: “não morre nunca mais, não morre nunca mais”. E eu não morro. São 115 anos até aqui. É tempo demais pra agüentar em um corpo que envelheceu apesar de não morrer.
            Muita gente quer saber a receita da longevidade. Fazem romarias, caravanas, mandam e-mails para a prefeitura da minha cidade. Todos querem a receita. Sugiro que em dia de tempestade fiquem embaixo de uma árvore no meio do descampado e esperem que um raio lhes caia na cabeça. Se funcionou comigo, quem sabe pode dar certo para outros também...
            Daqui a pouco vou dormir. Deito-me cedo apesar de dormir mal. É um sono sem qualidade porque não alivia as dores do meu corpo e eu quase não sonho mais. Na verdade há um sonho, adormeço pensando, imaginando, desejando que amanheça e eu não acorde. Daí sim, vai ser dia de festa! Vou andar leve, solto, vou dar pulos de alegria. Vou descobrir os segredos da morte: se dói, o que sentimos, quem encontramos, se vemos a face de Deus. E se os espíritas estiverem certos e existir reencarnação vou pedir um tempo, afinal já vivi duas vidas seguidas com meus 115 anos.
           Não estou deprimido por desejar a morte. Quero apenas fechar um ciclo natural: começo, meio e fim. Não posso ficar preso no meio do tudo, no meio do nada.  Mas, amanhã é outro dia. Tomara que seja o meu dia. Afinal, se a esperança é a última que morre, eu vou antes dela!!

ANA CARDILHO