terça-feira, 5 de julho de 2016

A DESCOBERTA

As crianças entraram na escola há mais de meia hora. Desde então ele está ali, no carro, com as mãos segurando o volante, olhando o nada e com o rádio ligado. Ele não passou filtro solar. Não tem o hábito. O lado esquerdo do rosto está levemente vermelho, queimado. Mas ele não liga. Não sente dor. Assim como não sente alegria. Ele sabe que deveria deixar as crianças na escola e isso já fez, cumpriu a missão. Agora, deveria reconhecer o próximo lance do jogo e se há algum sentido ou ordem racional. Mas, tudo acaba de se fazer confuso.

Ele está ali porque não sabe que poderia ir para outro lugar, outro país ou simplesmente voltar para casa. Ah, é isso?! É, isso mesmo! Ele tem que deixar as crianças na escola e voltar para casa. Um percurso curto. Ele conhece o caminho. Agora que se lembrou do que deve fazer, liga o carro e vai. Tudo como deveria ser. Manter uma ordem racional o ajuda a pensar e a agir.

Ele sabe que hoje é segunda-feira e nas segundas é dia de vestir a camiseta pólo azul claro, com o jeans escuro. No meio da tarde ele deve levar as crianças para a natação. Isso obedece a uma cronologia exata. Nunca na segunda-feira será dia de vestir a camiseta pólo branca. Essa ele só usa nas sextas-feiras, com jeans claro. Seguindo à risca os passos certos tudo ficará bem, tudo seguirá uma harmonia tão concreta que ele poderá quase tocá-la, pegá-la nas mãos, e ele poderá se sentir seguro no meio de uma quarta-feira se estiver usando a camiseta pólo preta. Ele fica bem de preto. Tem os olhos azuis e a pele clara, herança dos antepassados holandeses.

Agora está tudo bem. Ele já deixou as crianças na escola. Ele se deu conta de que deveria voltar para casa e conseguiu fugir do vazio que se aproximava e que fez com que ele perdesse meia hora dentro carro, cozinhando ao sol. Mas, já passou. São onze da manhã, está tudo bem e ele está entrando em casa. O carro fica na garagem. O cachorro se aproxima balançando o rabo, latindo. É bom ter um cachorro assim, amoroso. Isso faz parte da sensação de confiança da qual ele precisa para manter-se atento.

A mulher dele já saiu. Foi trabalhar. Ela é médica e não tem tempo para nada. Mal vê os filhos, mal vê o cachorro e a casa. Mal vê a si mesma e a ele que tenta não se encontrar com ela sem ninguém por perto. É preciso sempre ter alguém por perto porque ele não confia na mulher e sente ao lado dela um medo gelado. A sensação de frio vai escorrendo, como se houvesse um sorvete infiltrado nas veias dele, vai escorrendo por dentro e quando a sensação chega na boca do estômago, ele se dobra para frente de dor. Os braços cruzados. Ele chega a se ajoelhar de dor e pavor. Ele tem pavor da mulher. Ela sempre vestindo branco, apesar dos dias serem devotados a outras cores, ela sempre com aquele cheiro de éter nos cabelos e nas mãos, ela sempre com aquele olhar de paciência exagerada e a voz falsa, modulada em uma educação na qual ele não acredita. Ele sabe que ela não é educada coisa nenhuma.

Ele não a suporta. Evita dormir na mesma cama para não ter pesadelos. Com variadas desculpas, ele adormece pela casa: no quartos dos meninos, na sala diante da tv, abraçado ao cachorro no corredor, na cadeira da piscina quando as noites são quentes. Ela não liga. Não dá a mínima se ele tenta se esconder pela casa. Os dois foram traçando os acordos em silêncio. Ninguém falou nada, eles não discutiram a relação e nem assinaram contratos. Tudo foi se passando com acertos imaginários e deu certo. Ela só fala com ele para perguntar se ele tomou os remédios e ele diz que sim. Ele só fala com ela para pedir o dinheiro semanal do mercado que ele faz, os cheques da escola dos filhos e mais nada. Está bom assim. Mais nada dela.

Ele sente que se a rotina for mantida pode ficar bem o resto de todos os tempos. Mas precisa cuidar dos detalhes para que a rotina não se quebre. Ele sabe que as coisas são frágeis e caprichosas e ele se mantém esperto para desentortar, a tempo, o que estiver fazendo curvas, saindo do prumo, inventando atalhos. Não, ele não pode seguir atalhos. Ficaria confuso, teria medo de novo, perderia a expressão verbal clara e pronto... seria a oportunidade de ouro para que sua mulher declarasse, clinicamente, que o problema voltara. Como médica, ela o mandaria para o hospital e para aquela sensação de nada e tudo se repetindo sem parar. 

Ele estava bem, precisava ficar assim, seguro. Mantinha os remédios, eles faziam parte da mesma harmonia que o recorte dos azulejos trazia para ele na cozinha. Os azulejos eram sempre os mesmos, não faziam graça, não mudavam, não inventavam surpresas desagradáveis. Eles sim, os azulejos eram confiáveis. Mas sua mulher não. Nunca. Por isso, a necessidade de sempre se apresentar a ela com tranqüilidade, com a fala clara, racional e sempre ter alguém por perto para evitar que ela o sabatinasse ou o deixasse muito esgotado, muito perdido.

Quando a casa assumia a quietude da hora do almoço, sem crianças, sem esposa, sem almoço, somente ele e o cachorro sentados em algum canto, ele sentia como se pudesse ficar bem para toda a vida, como se até se tornasse mais corajoso, mais forte, como se pudesse ser outro homem. Nesses momentos ele tem uma vaga proximidade com o homem que foi um dia. Um sujeito dinâmico, profissional respeitado, um homem seguro de si e do mundo. Até aquela tarde... 

Uma tarde que não começou assim, no meio da tarde, mas teve início como um dia qualquer, amanhecendo. Ele ainda não sabe explicar, apesar de todas as teorias que já ouviu de médicos e psiquiatras, mas nesse amanhecer ele acordou estranho como se não coubesse no próprio corpo e não reconheceu a própria voz quando falou com a mulher durante o café da manhã. Incomodado foi trabalhar e na primeira dificuldade que teve, no meio do escritório, ele não conseguiu pensar duas vezes e manter uma conversa racional com o diretor que, naquele momento, chamava sua atenção por um erro qualquer, uma bobagem que em outro dia ele apenas pediria desculpas ao chefe e adotaria métodos para que o erro não se repetisse. Enquanto o superior ia falando e apontando a falha que ele sabia, sim era uma falha dele, tudo foi ficando meio sem foco, opaco. Ele não sentiu nenhuma raiva ou vontade de agredir o colega. Ele apenas queria sair de si mesmo, deixar aquele corpo que não lhe cabia mais, sair como se pudesse brotar da pele um corpo novo, menor, maleável, um corpo que voasse.

Ainda procurando algum foco, ele foi se afastando da sala, dos colegas, do chefe, da moça que servia o cafezinho e que, assustada, perguntou se estava tudo bem, do porteiro que tentou ajudá-lo quando ele caiu na porta giratória. Ali, no meio daquela porta, com os pés travando o movimento, ele só teria que se levantar para sair da armadilha, ele só teria que alisar o terno, arrumar o paletó, ajeitar a gravata e dizer que iria para casa porque estava com enxaqueca, ele só teria que tomar uma atitude racional, uma só. E tudo estaria salvo, seu dia, seu emprego, seu casamento, seus filhos, sua sanidade. Todos esqueceriam essa manhã confusa porque todos desejariam também a rotina de volta, o colega de volta, o excelente funcionário de volta. Só ele não se desejava, realmente, de volta.

Ao invés de tirar os pés do caminho da porta giratória e deixar que as pessoas o ajudassem a se levantar e a se recompor, ele tirou a caneta do bolso. Uma caneta metida a tinteiro. Uma caneta com pedra de rubi na tampa. Um presente de natal que ele ganhara da mulher. Aproveitando a ponta muito fina, afiada, nascida para ser lâmina, ele enfiou a caneta na garganta. Várias vezes. Golpes secos. Golpes encharcados de sangue e tinta, tudo misturado e mais misturado ainda foi ficando ao desespero dos amigos do escritório e dos seguranças do local e aquela confusão que ele não sabe bem como terminou. Ele acha que quebraram a porta giratória e com a confusão também teve um pé quebrado.
Acordou no hospital. Engessado, com suturas no pescoço, encharcado de remédios. Acordava e dormia, sem reconhecer horas, dias, pessoas. Só teve alguma consciência quando já estava sem gesso, sem pontos, muitos quilos mais magro, comendo gelatina e olhando o jardim da casa de repouso. Aos poucos foi montando a história, tentando entender com o terapeuta o que havia acontecido e o que poderia acontecer diante da nova realidade que o dominara. 

Ele sabia que o corpo que naquele dia tentava sair, inflando as veias, esticando a pele, rompendo os ossos e estourando sua cabeça, havia saído. Ele era outro homem e agora só queria manter as coisas dentro de alguma ordem e tranqüilidade para nunca mais inchar por dentro e ter que sair de novo, outro corpo, menor ainda, mais novo e mais desconhecido. Por isso os azulejos eram tão importantes, confiáveis e necessários. Eles tinham sempre o mesmo número na cozinha, no banheiro e na área de serviço. Sempre a mesma cor e sempre os mesmos recortes. Eles nunca cresciam e nem se portavam de modo diferente como se não fossem azulejos e sim pratos ou panelas ou vassouras ou armários. Eles mantinham-se fiéis e verdadeiros ao que eram por essência: azulejos.

Era assim que ele tentava se manter, o mesmo que dera certo ontem e na semana passada e no mês passado. Se havia dado certo era só repetir a fórmula, seguir a receita e ficaria bem, cumprindo as tarefas que lhe cabiam. Levar as crianças para a escola, para a natação, fazer as compras, manter a água fresca para o cachorro, alimentá-lo, fazer um lanche na hora do almoço, descongelar o jantar e desaparecer da cozinha antes que a mulher chegasse vestindo branco. Não era difícil. Era apenas preciso. Números, horas certas, sem surpresas, sem barulho. Depois de deixar a louça limpa, os quartos arrumados e de colocar lírios nos vasos da sala, ele viu que o relógio determinava a hora de buscar as crianças na escola e deixá-las na natação. 

Fez isso e não ficou para esperar. Da natação, os meninos iriam caminhando para a casa, aproveitando o final da tarde. O certo, o já traçado, o combinado era que ele voltaria para casa e teria um tempo a mais com sua quietude. Mas havia algum fio descascado, alguma luzinha prestes a queimar, algum sinal de pane porque da mesma maneira que ele ficara meio perdido pela manhã, na porta da escola dos filhos, ele se sentia de novo confuso. Agora, andando pelo quintal e ouvindo a respiração arfante do cachorro que brincava com um osso roubado, ele conseguiu decifrar o motivo da confusão. Na noite anterior, enquanto tirava os pratos da mesa do jantar, sua mulher começara um discurso sobre a possibilidade deles venderem a casa e se mudarem para um apartamento. Ela falava e falava e falava mas ele só conseguia filtrar algumas palavras do meio daquela sopa sem sentido. Que seria mais seguro nos dias atuais morar em um apartamento, que deveria ser um apartamento grande, com lazer para os meninos... teria até espaço para o cachorro... e aí ela entortava um pouco a boca porque ela nunca quisera, de verdade, um cachorro na família e só deixou que ele ficasse com medo de que as crianças caíssem doentes de amor e saudade e com medo de que ele de alguma forma piorasse, surtasse de tristeza.

Ele entendia: para o gigante e seguro apartamento iria toda a família e até o cachorro... mas não iriam os azulejos dele, não iriam os passos contados que ele sabia o número exato, da porta da sala até o quintal, não iriam os cheiros do gramado molhado pela chuva e nem iriam as estrelas que ele ficava namorando, deitado ao lado da piscina. Não. Essa não era uma boa ideia. Ele tinha medo de que a mudança pudesse começar outro processo de insanidade. Ao mesmo tempo, se ele dissesse isso à mulher temia que ela entendesse que o processo já tivera início. Ele estava sob pressão. Isso era péssimo. Se ela percebesse, começaria a segui-lo pela casa, tiraria dele a tarefa de dirigir para as crianças e ele estaria a poucos passos do hospital de novo. Era preciso disfarçar, fingir normalidade.

Pensando em normalidade, ele se viu um menino de sete anos, andando numa feira de mãos dadas com a mãe. Ele adorava as quintas da semana porque elas eram dias de feira. Sempre. Acordava já contando o tempo para sentir no ar o cheiro do carrinho de feira que a mãe tirava da cozinha, um cheiro de frutas, verduras e peixes que se entranhara entre tantos anos de feira. Lá estava ele, camiseta e shortinho de algodão e um chinelo de borracha. Passando entre as bancas, ele se enchia de perfumes diversos: os temperos moídos, as pimentas, os legumes, as verduras frescas, as frutas cítricas e as doces, o cheiro do sangue nas carnes cortadas, o cheiro do que ele saberia mais tarde ser o cheiro do mar nas carnes dos peixes e o cheiro do pastel mergulhado no óleo quente. Pastel de palmito. Esse era o seu favorito e um copo de caldo de cana, a garapa...tão docinha e tão gelada! Mas, naquele dia, o menino não havia ido ao banheiro antes de sair de mãos dadas com a mãe e na feira ele experimentava o terror da ansiedade. Desejava que tudo fosse rápido, bem mais rápido que o normal. Antes mesmo de estarem no meio das compras, ele sentiu que a vontade de ir ao banheiro era intensa. Não havia como pedir para voltar e nem como usar algum banheiro em uma feira de rua. Foi andando, buscando um controle qualquer, tentando distrair-se com a gritaria dos feirantes, mas estava passando mal, suando, sentindo-se fraco. A mãe nada percebeu e parecia andar em câmera lenta, bem mais vagarosa, bem mais indecisa se levava mamão ou manga, escolhendo sem fim entre um produto e outro. E de repente, ele percebeu que o amor que sentia pelos dias de feira se transformava em ódio. Ele odiava aqueles cheiros misturados, os gritos de ofertas e descontos, as pessoas com sacolas e carrinhos andando lentamente, o chão sujo, com cascas de frutas, sangue das carnes e óleo recém-queimado. Se pudesse, ele abriria fogo contra a feira, mataria a todos e queimaria todas as barracas. Experimentando o sabor do ódio ele viu que estavam diante da banca do pastel e do ritual final da feira. A mãe pediu o de palmito para ele e o de queijo para ela. O menino respirou fundo mas já era tarde. Ele havia urinado pernas abaixo, fazendo uma poça entre os chinelos de borracha. Sem a sensação de urgência, ele conseguiu fingir normalidade. Afastou-se uns passos da poça e rezou para que a mãe não percebesse o short azul marinho e as pernas molhadas. A prece foi boa. Eles comeram o pastel e foram embora. Em casa, ele teve tempo de ficar no quintal, ao sol, até tudo ficar seco. Até tudo ficar seco. Era isso. Assim deveria agir. 

À noite, quando sua mulher chegou encontrou a mesa posta. Eles jantariam juntos, com os meninos. Um assunto foi se juntando a outro até que ele chegou ao que realmente queria falar. Que havia pensando sobre a hipótese de uma mudança para um apartamento mas estava decidido, e aí caprichou no tom para dizer a palavra decidido, de que a casa onde moravam era um palacete perto desses apartamentos modernos, sem espaço e de pouco conforto. A questão segurança não era tão garantida em apartamentos. Os jornais provavam, com as notícias de invasões a condomínios e quando tentava achar mais argumentos foi surpreendido pela participação dos meninos na conversa: eles não queriam mudanças. Adoravam a casa, adoravam a escola do bairro e os amigos. Eles não queriam ir para apartamento algum. A mulher suspirou. Estava cansada e disse que tudo bem, se era assim, que ficassem então na mesma casa. Terminou a discussão declarando-se voto vencido: três contra um. Mas estava mesmo exausta. Iria subir para o quarto.

Fim do jantar. Enquanto ele lavava a louça soube que havia conseguido. Fingindo normalidade, ela não percebera a poça de ansiedade que havia aos pés dele, nem suas pernas geladas, nada! Isso não era apenas uma vitória sobre a questão mudança para apartamento. Era a descoberta de uma tática perfeita para a guerra diária. Se ele conseguisse fingir sempre normalidade, independente de quais poças estivessem se formando ou do que houvesse escorrendo, involuntariamente, de dentro dele, havia uma chance de parecer normal, uma chance de ser normal. Nessa noite, ele só conseguiu adormecer no meio da madrugada. Estava feliz demais para dormir. Precisava experimentar seguidas vezes a alegria e a confiança que a descoberta trouxera. Seria assim. Um fingidor de normalidade, situação atrás de situação...até ser um mestre total na arte de fingir, encenar, ser além e aquém do realmente sentisse ser. Assim estaria a salvo. Da mulher e das confusões que pudessem surgir. Ele tinha agora um salvo conduto. Enquanto os azulejos seriam sempre os mesmos e os dias sempre exigiram as mesmas cores, ele andaria por aí, tranquilo, deixando seus passos molhados invisíveis. Ele havia descoberto como ser um como eles eram, como ser um entre tantos que agiam da mesma forma. Ele só precisava fazer de conta.

ANA CARDILHO (conto premiado no Prêmio Sesc de Contos Machado de Assis, 2007)

Nenhum comentário:

Postar um comentário