sexta-feira, 27 de agosto de 2010

GATA RUSSA

A MENINA MAIS LINDA DA CIDADE

Era uma vez uma garotinha de olhos bem azuis e cabelo cor do sol. Quem a olhasse, num primeiro momento, tinha a impressão de estar vendo um anjo. Mas, de perto era possível observar uma ponta de rabinho vermelho entre as asas... De anjo a menina só tinha a aparência. Na verdade, ela era terrível com seus 7, 8 anos. Subia e caia de muitas árvores, batia nos colegas de escola, enfrentava os valentões. Arrojada, a menina de olhos azuis não via limites para sua coragem e para a sua sede de liberdade. Entre os irmãos era a que mais se metia em encrencas na escola, na rua, na vizinhança. Com a mãe vivia às surras. Apanhava pelas traquinagens que aprontava e mesmo assim, no dia seguinte, lá estava a pequena loira subindo em algum muro, caindo de algum lugar alto ou chegando em casa com o nariz sangrando mas feliz da vida porque o moleque que a tinha machucado estava sangrando bem mais que ela. Era um anjo endiabrado ou um diabo angelical.

Aos 9 anos, a menina viveu seu primeiro contato com a dor. A mãe morreu. De repente. Jovem ainda, nem tinha 50 anos, reuniu os filhos, fez com que cada um pedisse a bênção, deitou e morreu. Como fica uma menina de apenas 9 anos sem a mãe? Apegou-se ainda mais ao pai, um italiano baixinho, de quem ela havia herdado os olhos azuis. Ele gostava de comer pão com alho frito, dividia vinho tinto com um cachorro chamado Bidu e dizia para todos que quisessem ouvir que "a vida é boa e quem não gosta da vida é que não presta". O pai levava para a menina, à noite, pão com açúcar e assim ela dormia sossegada.

 COM QUEM SERÁ QUE A GATA VAI CASAR?
O tempo passou, o anjo endiabrado cresceu e se tornou uma mulher linda, capaz de mobilizar a atenção de muitos pretendentes na pequena cidade. Ela parecia uma atriz de cinema com os cabelos muito claros, compridos, pela cintura. E aqueles olhos azuis? Ofuscavam o próprio céu. Mas era uma gata selvagem, brava que só. Com ela não tinha moleza. Gostava de sair com as amigas, dançar no clube, pular carnaval. Até que um rapaz tímido, de olhos tristes, muito bonito, de voz aveludada mas ciumento até o último fio de cabelo conquistou o coração da gata feroz. Nada fácil o namoro. Alianças quebradas no alicate, discussões, enfrentamentos, arranhões para todo lado e o moço chorava diante do espelho. Sem aquela menina de olhos azuis, ele prometia se matar. A mãe do rapaz se desesperava. Ele era filho único! Ele não podia morrer de amor. E lá ia ela à casa da gata russa com um agrado, um presente. Às vezes um corte de vestido, às vezes um bolo de fubá. Puxava conversa dizendo que o filho andava triste demais com a separação, que não comia, não dormia, não saia de casa e só chorava. A menina endiabrada, agora uma mulher estonteante, ria por dentro. A luta estava ganha. Aquele namorado estava no papo! E de briga em briga noivaram e de briga em briga se casaram.

QUEM VAI ENCARAR ?
As discussões não impediram que eles fossem felizes, que construissem um lar e tivessem filhos. A gata russa foi mãe de três crianças: uma menina e dois meninos. Eles cresceram, foram para a vida. Nenhum deles ganhou os olhos azuis ou os cabelos da cor do sol. Mas, ganharam a determinação, a firmeza e um pouco da braveza da mãe também... Eram calmos como o pai mas se fosse preciso os filhos se transformavam. Eles tinham herdado as garras da mãe que sempre os defendeu como uma leoa ferida. Quando a mulher de olhos azuis tinha 54 anos a vida estava mansa. O marido aposentado, o primeiro neto correndo pela casa, os filhos encaminhados. Por essa época ela nem sonhava em ter mais um filho.

O QUARTO FILHO
Mas, a vida é cheia de manhas e surpresas. Quando ela menos esperava, um bebê de um ano e meio, magrinho, com cabelos ralos e ancaracolados, olhos grandes e pouco apetite, chegou para ficar. Ele tinha nome de anjo e, embora fosse seu segundo neto, iria ser, de verdade verdadeira, seu quarto filho. Aquele menino precisava comer, precisava engordar, se fortalecer para não cair tão doente, não chorar tanto, não passar tão mal. Noites a fio acordada, dias de dedicação, sopinhas, sucos, consultas a médicos, especialistas, até descobrir que o garoto sofria de alergia a lactose. Comidas especiais, leite de cabra e mais dedicação e mais carinho, e mais noites mal dormidas zelando pelo sono do quarto filho. Deu certo. O bebê fraquinho cresceu um touro. Costas largas, cabelos aos montes, ossos fortes e um sorriso zombeteiro no rosto. Ela havia conseguido. Quando imaginava que só seria avó, que só receberia a visita dos filhos para o almoço de domingo, quando imaginava que viajaria mais para ver as irmãs na cidade natal, que teria tardes meio vazias, sem nada pra fazer, ela viu que não seria nada disso. Mas, teve energia, se fez leoa feroz de novo e criou o quarto filho. E ele cresceu um menino feliz.

GATA RUSSA QUER AÇÚCAR
A mulher hoje com sessenta e quatro anos sabe que fez um bom trabalho com aquela família. Sabe o quanto é amada pelos quatro filhos, pelos netos e pelo marido que está ali, firme e forte, ao seu lado. E se um dia ele a perder pode voltar a chorar na frente do espelho e dizer que sem ela não consegue viver. Ela ainda é uma leoa selvagem. Acho que nunca vai perder a força, a energia para resolver coisas, para quebrar tabus, para defender quem ama. Mas, dentro do coração da leoa ainda mora a menina... a de asas de anjo e rabinho, pulando de árvore em árvore, caindo dos muros e deixando colegas com um olho roxo. Sabendo o que sei hoje da vida, posso dizer que a leoa também precisa de carinho, precisa que os quatros filhos, netos e marido a peguem no colo e levem para ela, à noite no quarto, um belo pedaço de pão recheado com açúcar. Afinal, nem todo dia é dia para rugidos, garras e arranhões. Tem momentos, em que todo felino, por mais bravo que seja, quer mais é um afago nas costas e quer ronronar um pouco... feito um gatinho manso, manso...

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A MULHER QUE SONHAVA

Era uma vez uma mulher que sonhava. Não era exatamente uma mulher que tinha desejos, vontades, objetivos a alcançar. Não esse tipo de sonhos. E sim o tipo de sonho comum a todos nós, aqueles sonhos piratas que nos assaltam pela madrugada, pilham a realidade, e levam a nossa sanidade feito refém. A mulher que sonhava sonhava sonhos de histórias prontas. Histórias enormes, cheias de símbolos, para a delícia dos terapeutas.

Essa mulher sonhava tanto que desejava até alugar-se para isso, feito uma personagem de um conto de Gabriel García Márquez que se alugava para sonhar. Mas, como ela apenas sonhava e pouco entendia da razão das coisas, essa mulher não podia viabilizar seu talento como um negócio e por isso nunca alugou-se, nem colocou uma banca de sonhos em alguma feira semanal, e também não abriu uma loja para comercializar sonhos prontos e nem anunciou pela internet que dispunha de um estoque inesgotável de sonhos para pronta entrega. Ela apenas sonhava. Sem objetivos, sem amanhã. Seus sonhos eram para o momento e depois... depois havia outros e depois mais outros... 

Pois essa mulher, de uns tempos para cá, deu para sonhar com roteiros um tanto cinematográficos. Outro dia, ela sonhou que visitava uma casa em obras. Esse trecho do sonho ela bem conhecia. Era um sonho recorrente que vez ou outra acontecia. Sempre uma casa em obras, um apartamento destruído, um casarão atingido por bombas da segunda guerra. Sempre paredes caindo, banheiros desfeitos, tetos ausentes. Depois da visita a mais uma casa em ruínas, a mulher que sonhava foi para a rua e viu uma amiga dos tempos de faculdade num ponto de ônibus. Havia uma multidão esperando pelo transporte. Ela parou, começou a conversar com a amiga, que era fotógrafa, sobre as condições desumanas do transporte público. Como tanta gente caberia dentro de um ônibus? Ao lado delas havia uma mendiga, uma moradora de rua que era personificada pela atriz  Meryl Streep.
Meryl Streep

Essa maltrapilha, no sonho, era uma mulher feroz, violenta, que gritava e ofendia as pessoas de modo geral. A mulher que sonhava percebeu a tensão do momento e tentou manter-se distante. O ônibus chegou, as pessoas se amontoaram na porta buscando um meio de entrar e, de repente, a moradora de rua deu um chute na mulher sonhadora. Um chute daqueles que a gente não esquece. Um chute que dói tanto pela carne atingida quanto pela humilhação. A mulher se sentiu contaminada pela violência da mendiga e tirou-lhe os sapatos. Jogou-os longe. A mendiga ainda mais irada também arrancou os sapatos da sonhadora e também os jogou longe. As duas discutiram e enquanto a mulher que sonhava dizia que a maltrapilha não poderia tirar mais nada dela, que deveria ser combatida, que deveria ser enfrentada, Maryl Streep ria solto, ria bem. Ria e se afastava jogando pragas pelo caminho. A amiga repreendeu a sonhadora, dizendo que ela não deveria ter discutido na rua. E então a mulher que sonhava começou a chorar. Chora no sonho e chora fora dele. Chora e acorda chorando. Acorda muito triste e nem sabe direito por que até lembrar-se que tamanha tristeza era por ter brigado com a atriz Mary Srteep.

Farah Fawcett
Dias depois, Hollywood volta e a mulher sonha que vê Farah Fawcett sentada num degrau, diante de uma porta num colégio. É final de ano e as pessoas estão em festa na escola. Dia de amigo secreto entre alunos e professores. A mulher que sonha se vê com quinze anos, cheia de vida, cheia de planos. Ela passa pela ex-pantera que lhe diz que ali não há discórdia. Ela entra numa sala de aula enfeitada, cheia de presentes e ganha de uma professora uma caixa fechada. Aquele era seu presente de amigo secreto. Em seguida, a porfessora pede que ela escolha um segundo presente. Num sofá há almofadas de vários formatos que foram feitas, costuradas, por um grupo carente que os alunos teriam ajudado no passado. A mulher que sonha se sente contente com a recompensa por uma boa ação que fez um dia e pega uma almofada preta e amarela.

No terceiro sonho da fase "Cinema", ela está num ônibus que às vezes é ao mesmo tempo um avião. Há várias pessoas por ali e ela identifica o ator Robert Downey Jr. Ele explica que perdeu a carteira, ficou sem dinheiro, e por isso viaja de ônibus. Eles conversam. Ele é simpático, muito agradável. Quando estão chegando ao ponto final, que a mulher nem sabe ao certo qual é, o ator lhe pede emprestados os óculos escuros... para fazer tipo aos fotógrafos, como ele explica entre risadas. Ela empresta e depois que desce do ônibus ou do avião, nada é muito claro em sonhos, ela perde o ator de vista. Mas, depois fica sabendo que ele tentou entregar os óculos para ela num hotel. Mas, não chegou. Usou uma moto de alta potência que acabou atolada num lamaçal. Óculos perdidos, enfim... Nesse dia ela acordou dando risada. No final do sonho, ela via que o danado do Robert tinha desistido de enfrentar o lamaçal para devolver seus óculos escuros porque quando voltou para a mansão, para deixar a moto e pegar um carro, havia duas lindas mulheres esperando por ele. Num instante ele esqueceu os óculos escuros sobre uma bancada e o sonho se desfez. Mas, como culpar o pobre Robert? Afinal de contas, quem não esqueceria?
Robert Downey Jr

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A BOLA DA VEZ

A bola do sonho
Era uma vez um menino que nasceu numa cidade que tinha nome de anjo. E não um anjo qualquer, mas nome de anjo poderoso: São Miguel Arcanjo! Nessa cidade, no interior do estado de São Paulo, o menino morava com os pais. Filho único. Os irmãos vindos antes dele estavam mortos. Só ele vingara sob o olhar atento e sempre preocupado da mãe que fazia de tudo para que esse filho tivesse saúde e pudesse crescer. Aos cinco anos, o menino era magro, tinha o cabelo cortado a la escovinha e a voz, ainda infantil, já prometia tons bem mais aveludados para o adulto que ele um dia poderia vir a ser. Por essa época, a mãe quis fazer um agrado. O garoto estava tão magrinho, precisava comer mais, ter mais apetite, ganhar peso. Para fazer o pequeno Antonio gastar energia, ter fome e se alimentar melhor, a mãe deu a ele uma bola. Eles moravam numa casa com quintal de terra, pés de cana de açúcar plantados, abacateiro, mangueira, balanço de pneu velho pendurado em algum galho de árvore forte. Dava pra jogar muita bola naquele espaço todo...

O menino se encantou. A bola era linda demais! Branca. De couro. Com gomos costurados. Uma bola de verdade. Só tinha um problema... Por enquanto, era melhor manter a preciosidade no quarto, debaixo da cama e deixar os chutes no quintal para outros tempos. Quem sabe quando o pai, na época motorista de caminhão, estivesse viajando? A mãe sabia o quanto o marido poderia ser ranzinza e achava melhor não abusar. O menino concordou. A bola foi escondida debaixo da cama e todos os dias, ao acordar, o pequeno deixava a cama, puxava a bola e sentia seu cheiro de couro novo, sentia as costuras, sabia de cor o tamanho e o peso do brinquedo. Antes de dormir, o mesmo ritual. E o menino sonhava com o momento em que pudesse chamar os primos e amigos para muitos jogos no quintal. Ele sabia que a bola mudaria de cor, ficaria suja, encardida, e talvez até murchasse um pouco depois de tantos chutes. Mas, o prazer de imaginar-se um jogador de futebol valia o preço.

Bola antiga
Mas, semanas se passaram, o pai não viajou e acabou descobrindo o que o menino tanto fazia no quarto. Ficou muito bravo. Não queria um filho perdendo tempo com brincadeiras e bolas e lá foi a mãe para a loja do Turco. Ela teve que devolver o brinquedo que ainda estava novo em folha. O menino, acostumado a ser solitário por sua natureza de filho único, caiu numa tristeza sem tamanho. Perdeu o pouco apetite que tinha. Emagreceu ainda mais. Embaixo da cama, mais nada. Por dentro dos sonhos, mais nada. O pai percebeu que o garoto andava pela casa feito sombra, macambúzio. Ficou com medo. E se mais esse filho não resistisse? A mãe, com o mesmo temor, apegou-se ao Arcanjo Miguel. Só ele podia mudar a cabeça dura do marido radical. De quebra rezou para Nossa Senhora Aparecida, Bom Jesus do Iguape e ainda chamou pelas Santas Almas. Nunca se sabe...Alguém lá em cima gostava dela e os terços e rosários que ela fez deram certo. Um dia, o marido chegou em casa trazendo uma bola branca, de gomos de couro e ainda deu ao menino um par de chuteiras! Era a glória! Ele podia correr, chutar, fazer gols, em companhia dos primos, em pleno quintal de casa. O menino cresceu feliz. Mas não foi jogador de futebol nem abriu uma loja de brinquedos ou de produtos esportivos. Na verdade, já adulto, descobriu que seu esporte era a corrida. Ele gostava de correr. Não atrás de uma bola. Mas correr por correr. Correr contra o vento, sentindo o sangue quente, a alma suada, a vida plena. E assim, se fez. Correndo sempre. A bola se foi. A corrida ficou e o sonho ficou. Dentro do homem que corre ainda existe o mesmo menino magrinho, de olhos castanhos e um sorriso manso... Debaixo da cama, vai saber qual o sonho que ele ainda esconde? FIM (Para o Tenente-Coronel França... com amor...)
  

terça-feira, 3 de agosto de 2010

PROMESSAS QUE A VIDA MUDA

Infância de mãos dadas

Era uma vez dois melhores amigos que se conheceram com sete anos de idade. Desde o primeiro ano de escola, a menina e o menino estudavam juntos. Ele chegou já com o ano letivo correndo e foi colocado, pela professora, para sentar-se ao lado da menina, na primeira carteira. Ela era quieta e era estudiosa, poderia ajudar o garoto que havia perdido as primeiras lições. De início ela não gostou. Perdia o espaço na carteira dupla e ainda por cima teria que conversar com o garoto. Sentia tanta inabilidade para falar, trocar ideias, tanta preguiça! Mas, não podia recusar o novo colega e tentou ensinar a ele o que já havia aprendido. O menino era gozado. Meio fortinho, usava o cabelo repartido de lado, tinha sorriso fácil, fácil e gostava de fazer bagunça. Ria fora de hora, imitava galinha cacarejando, jogava bolinhas de papel em outros colegas na sala de aula e no intervalo deixava a colega de carteira de lado e ia chutar bola com outros guris. Ela nem ligava ou se ligava não percebia. Comia sua maçã em paz, sem precisar conversar com ninguém. Na saída da escola é que a fragilidade do menino aparecia. Nas primeiras semanas, até ele se acostumar à nova escola, quando saiam da sala de aula, em fila, o menino segurava a mão da amiga. Ela achava aquilo esquisito mas ele sorria e alguma coisa lá dentro daquele coração de sete anos dizia a ela que ele precisava daquele aperto de mão. Segurança.

Canetinhas Sylvapen
Cresceram assim. Lado a lado em carteiras de madeira escura que cheiravam a óleo de Peroba e graxa. E quando a escola adotou carteiras individuais, ainda assim sentavam-se bem perto. Muita gente achava que eram irmãos e eles não negavam. Pareciam mesmo irmãos. Com ele a menina aprendeu a falar e a sorrir. Com ela, o menino aprendeu a usar o cabelo mais comprido e espalhado, sem pentear. Gostavam de coisas parecidas, como canetinhas coloridas Sylvapen, botas de couro e solado de borracha e pulseiras de miçangas bem apertadas no pulso. Gostavam também de chocolate. Sonho de Valsa.


Na adolescência compartilharam todos os segredos que os adolescentes podem ter. Ela o ajudava com as namoradas levando recados, trazendo respostas. Ele ouvia seus planos para a vida adulta. Eles liam romances emprestados e falavam sobre Deus, sobre as estrelas, sobre a velocidade do som e da luz, sobre raios. Ele era fera em matemática e ela passava em português com louvor. No colégio participaram de concursos literários, a menina ganhou quatro anos seguidos, e cantaram uma canção de autoria da dupla, num festival juvenil de música organizado pela escola. Nisso foram vaiados. Jogavam xadrez na hora do intervalo. Iam e voltavam juntos da escola. Tantos assuntos, tantos planos! Ele faria engenharia. Ela seria escritora. Eles nunca se separariam e seriam, para sempre, os melhores amigos do mundo.

Mas.... toda história tem um "mas" (a vida é cheia de "conjunções coordenativas adversativas": mas, porém, todavia, contudo, entretanto, no entanto, senão, não obstante), as coisas não foram bem assim.
Quando os melhores amigos estavam com dezesseis anos romperam. Ele se recusava a aceitar que a menina havia crescido e tinha outros interesses além de ler poesia e conversar até a exaustão com o menino. Ele se negava a aceitar que ela era uma mulher e, como toda mulher, mais madura que um rapaz de dezesseis anos. Na última vez em que eles estiveram juntos, sentados frente a frente para uma conversa, na verdade a última conversa, era manhã. Ele estava suado, tinha feito aula de educação física e usava uma camiseta vermelha. Ela estava tensa, tinha as mãos no bolso e sentia frio. Ele reafirmou que não aceitava as escolhas de vida que ela começava a fazer. Ela ficou quieta. Ele reclamou que se sentia traído porque ela nunca havia colocado para ele, seu melhor amigo até então, aquelas dúvidas existenciais. Ela começou a chorar. Ele também. Eles ficaram em silêncio. E ela se lembrou que os dois, ali mesmo naquele pátio de colégio, anos atrás, tinham achado uma gilete velha no chão e num arroubo de ternura e de bobeira tinham feito um risco de corte em cada pulso e tinham misturado o sangue, como amigos para sempre, irmãos até de sangue. Estava rompido o pacto. Ele não queria aquela amiga e ela sabia que não poderia  caminhar levando o radicalismo dele. Não se deram tempo para pensar. Apenas se disseram rompidos. Ele levantou, secou os olhos e foi embora. Ela ficou sentada e chorou mais um pouco. Os dois, de alma de escorpião, sabiam que aquilo não tinha volta e que daquele instante para frente seria cada um por si, sozinhos. E antes de ir embora, ela ainda guardou a imagem do menino quando ele havia feito a barba pela primeira vez e foi ela a primeira pessoa que notou o rosto mais limpo, mais claro, numa tarde de férias, andando de bicicleta, na calçada da padaria. A primeira barba. O primeiro amigo. Tudo perdido.

Café com pão e saudade
Ela seguiu e não foi escritora. Ele seguiu e não foi engenheiro. Anos depois ainda se viram, daí sim pela última vez. Ela comprava pão e ele chegou de surpresa. Ela tinha no pulso esquerdo uma pulseira de couro e miçangas. Ele gostou, elogiou. Ela teve vontade de tirar a bijuteria e dar e ele. Mas nada fez. Ela teve vontade de abraçá-lo e pedir que reatassem, que voltassem a ser amigos, a dividir segredos. Mas, nada disse. Ficaram ali, na fila do pão. E depois se foram. Era hora do café da tarde. E era tarde demais para um café a dois. 
FIM

sexta-feira, 30 de julho de 2010

A PRIMEIRA HISTÓRIA...

Era uma vez... E a magia começa. As crianças se fazem atentas, os adultos se postam curiosos, os emotivos preparam as lágrimas, os céticos torcem o nariz. Aqui só vou contar histórias. Textos com outros tons podem ser encontrados num blog recente (ana.cardilho.zip.net) ou num blog mais antigo (anacardilho.livejournal.com).

A história de hoje começa assim:
Era uma vez, uma menina que tem dez anos e mora com os pais e um irmão.Tem vida de criança de dez anos, com escola, rotina, tv em casa, brincadeiras eventuais. O que ela tem de diferente é que adora contar histórias. Quando as crianças se reúnem na rua ela encontra seu público mais fiel e começa a inventar personagens. As crianças menores adoram uma história em especial que fala sobre um tal "padre caveira". A menina de dez anos descreve o terrível personagem que assombra o bairro com seus disfarces e maldades e vez ou outra algum garotinho mais desavisado solta um grito de susto na turma e esconde os olhos com as mãos. "Padre caveira" é um vilão e tanto!

Numa manhã, a menina foi ao bazar do bairro comprar um caderno. Início do ano letivo. Estava ali no bazar, distraída, esperando o troco quando seus olhos deram com aquela preciosidade. O coração de dez anos se soltou do peito e percorreu o corpo todo, a menina tremia. Era lindo demais o que ela tinha acabado de achar na prateleira, ao lado de pastas coloridas. Era o primeiro objeto de desejo da sua vida. Era o primeiro amor. Na prateleira, um fichário cinza encadernado com uma foto do ator Marcos Paulo na capa. Por essa época, o moço devia contar com vinte e poucos anos. Era um gato de cabelos encaracolados e olhos tristes. A menina perguntou o preço do fichário. Caro demais para sua mesada destinada aos lanches na escola pública. E ela que não era boa com números, mas já era amante das letras, fez umas contas rápidas, de cabeça, e chegou à conclusão de que se usasse o troco, se juntasse uns dinheiros de alguns lanches, em pouco tempo poderia pagar pelo fichário. Fez a proposta à dona do bazar. Levaria o Marcos Paulo com o troco como entrada, no fim da tarde traria mais uma parcela e nos dias seguintes pagaria parcelas iguais até quitar tudo. A moça concordou e ali estava a primeira dívida da menina de dez anos. E ali, em suas mãos, estava a jóia rara, aquele rosto lindo que provocava alguma coisa boa dentro dela. Ainda sem explicação. Foi para casa. Era a menina mais feliz do mundo. Nos dias seguintes parava o que estava fazendo só para dar uma olhadinha no fichário. Adorava carregá-lo entre os braços, feito um abraço forte.

MARCOS PAULO
Até que sua mãe viu aquele objeto estranho no quarto da menina. E começaram as perguntas: O que era aquilo? Um fichário. A escola tinha pedido. Não exatamente. Quem tinha autorizado a compra? Ninguém. Quanto custara? A menina falou, explicou que havia pago uma parte e se comprometido a pagar o restante... Nem acabou de falar. A mãe estava brava e levou a menina ao bazar. Ela não queria Marcos Paulo nenhum. Devolveu o fichário e a dona do bazar se negou a devolver o dinheiro. Mas, ela podia pegar alguma mercadoria correspondente ao que já havia sido pago. A mãe pegou uma presilha de cabelos com um ursinho encrustrado. Depois da bronca, a menina foi para o quarto. E ali abriu a presilha de cabelos de ursinho até que as hastes estouraram e o urso se partiu. Lixo.

Anos se pasaram. A menina virou adolescente. Tinha treze anos e estava no mesmo bazar comprando a lista de material escolar. Nesse ano havia o pedido de um fichário. Em cima do balcão vários deles, com capas diferentes, para a ex-menina e agora adolescente escolher. No meio de todos, um bem empoeirado chamou a atenção. Ali estava o fichário com Marcos Paulo na capa. A garota sentiu uma pontada na boca do estômago. Disfarçou. Não queria que nem a mãe e nem a dona do bazar se lembrassem do passado, não queria dar bandeira. Levou para casa o velho fichário. No quarto, pegou um estilete e cortou com cuidado o plástico da capa. Tirou a foto do ator e a guardou em uma pasta. Na capa do fichário cinza, a adolescente colou uma nova foto. Agora, era a vez da atriz Farah Fawcett. Agora, já era outra época... 
FIM
FARAH FAWCETT