sexta-feira, 22 de março de 2013

DATA DE VALIDADE

Minha identidade caducou, venceu. 
Essa é uma frase de duplo sentido, eu bem sei. Pode ser que eu esteja numa fase complexa de falta de identidade ou pode ser que o meu RG, aquele documento que sempre nos pedem, tenha passado da data de validade. 
Vamos escolher a segunda opção, uma vez que, aos 47 anos de vida, tenho relativo conforto com minha própria identidade e guardo muitas definições já conquistadas, às vezes com leveza e na sorte, às vezes na marra e arrastando correntes. Enfim, minha identidade estava vencida e, antes que eu tivesse que provar para o caixa de uma agência bancária ou de um supermercado que eu sou eu mesma, agendei um horário num Poupatempo, na zona sul de São Paulo, e lá fui eu com o RG antigo, vencido, e nele constando uma foto de mais de 20 anos. Levei também o CPF, uma velha certidão de nascimento e, no último instante, peguei o passaporte que está novinho em folha. 
Cheguei na hora marcada, documentos nas mãos e enfrentei a primeira fila, logo na entrada do Poupatempo, para mostrar o comprovante do agendamento (feito pela internet). Estava tudo certo, primeira etapa vencida, a mocinha sem sorrir ou me olhar disse para eu seguir a faixa azul no chão. Olhei para o chão e havia uma faixa azul, não era uma brincadeira infantil ou propaganda de um queijo ralado. 
Fiz o que a mocinha brava pediu...tenho problemas com pessoas que carregam carrancas. Sinto medo e esse sentimento me paralisa. Sou filha de mãe brava, capricorniana, dona da rua, dona do mundo que foi minha infância e adolescência. Logo, quando alguém faz cara de poucos amigos, eu logo acredito e acho melhor não provocar. Sigo a ordem, sigo o chefe e só me deu conta de que poderia ter sido diferente muito tempo depois. Seguindo a faixa azul, pisando direitinho sobre ela, cheguei a uma outra atendente. Essa estava alegre, me deu bom dia, eu respondi, ela olhou meus papéis, sorriu, eu também sorri, aliviada (tinha seguido direitinho a faixa azul!Ufa!) e ela me entregou uma senha. Era só acompanhar no painel eletrônico os números das chamadas e logo eu seria atendida. Nossa, que fácil! Fui me sentar um pouco cismada...fácil demais. 
Havia 9 pessoas na minha frente. Eu poderia abrir o livro que havia levado na bolsa (sim, sou do tempo em que a gente carregava livros na bolsa e ainda fazia anotações nos mais queridos, mais impactantes) ou poderia olhar a esmo o Facebook, responder algum e-mail pendente ou, ainda, ler o jornal no meu Iphone (santa invenção!). Mas, percebi que as nove pessoas estavam sendo chamadas com rapidez. Desisti da leitura. Fiquei olhando, com um trago de melancolia, para aquele rosto que foi meu aos 20 anos. Era mais redondo, mais "cheinho", menos marcas, menos rugas, menos caminhos percorridos. Havia uma força, uma ilusão nos olhos daquela moça de cabelos curtos! Questionei se havia a mesma força e ilusão na minha foto atual que eu comparava. Sim, havia. Beirando 50 anos, ainda caio em ilusões, acredito nas pessoas, ainda aposto todas as minhas fichas no amor, na amizade e nas pessoas. 
De repente, o painel eletrônico piscou e apitou e era minha vez. Sentei-me diante de outra moça (só contratam pessoas bem jovens no Poupatempo? Legal!). Ela não respondeu ao meu bom dia. Estava com cara de cansada e não passavam das dez da manhã! Coitada! Ela pegou meu RG vencido, ignorou a certidão de nascimento e o passaporte e quis a foto. Tudo bem, entreguei. Passou um século e ela teclando, olhos fixos na tela do computador, e eu contando moscas, reparando que ela comia as unhas e usava um esmalte azul marinho. Até que ela perguntou telefone e endereço: nossa, eu existia, ela me enxergava. Que bom, eu não estava num filme de terror daqueles que a gente acha que está vivo mas ninguém nos vê, sabe?  Respondi a todas as indagações e aí, meus amigos, ela não me disse nenhuma palavra, levantou, saiu e eu fiquei ali com mil dúvidas. Acabou? Posso ir embora? Ela foi ao banheiro? Pausa para o café? O chefe chamou pelo computador? Ela teve uma diarréia terrível e saiu correndo? Ela sentiu a morte chegar e resolveu dar o último suspiro fora do ambiente de trabalho? O que eu deveria fazer, afinal? Com tantas dúvidas pesando, fiquei letárgica e optei por me manter ali, sentada, até que alguém viesse me dizer: "senhora (pois é, já me chamam assim...socorrei nossa senhora da perpétua juventude), a senhora tem de estar se levantando e tem de estar seguindo a faixa vermelha porque a senhora não mais existe e se estiver, ainda, existindo, vai ser deletada porque a senhora está em débito com o nosso sistema Tempo e vamos ter que estar seguindo as instruções de nosso manual. A senhora, antes de inexistir, pode, por favor, estar anotando o número do protocolo de atendimento? Gostaria, também, de estar dando uma nota para mim?" Puf, despertei de meu pesadelo "telemarketiniano", com a volta da moça do computador e ela pedia minha mão. Puxa, mas assim? Sem jantar nem beijinho? Pois é. Assim mesmo. A seco e sem gelo. Ela pegou minha mão direita e lambuzou, dedo a dedo, minha pele com uma tinta pegajosa e escura. E eu, que guardo a maior frustração da vida, por não saber tocar nenhum instrumento e não saber ler partituras, "toquei piano", na linguagem policial. Não bastasse com a mão direita, toquei também com a esquerda. Quando acabou, a moça me entregou alguns papéis e jogou um gel gelado nas minhas mãos. Não saiu tudo, claro. Mas, o suficiente para que eu assinasse as fichas, sem causar borrões no papel. 
Fim do processo, ela me entregou um protocolo com o dia e o horário para a retirada do novo RG. Só isso? perguntei um pouco chateada. Só isso, senhora! respondeu a mocinha impaciente. Tá bom, e como eu saio daqui? A senhora vai estar seguindo a faixa azul ao contrário. Ah, claro! Só podia ser, claro, claro. Obrigada. E eu fui embora do Poupatempo, com tempo de sobra para um café. Parabéns, governo estadual. O trem funciona. Enquanto tomava meu café puro, forte e sem açúcar, imaginei Sir William Shakespeare no Poupatempo, tentando seguir a linha azul, tentando compreender as palavras cruzadas nascidas no gerúndio e se perguntando: "ser ou não ser, eis a questão.". Pobre Sir... acabaria contido por um segurança que veria nele uma ameaça à integridade do patrimônio público, um meliante desordeiro. É amigos, sigam a faixa azul se quiserem ter uma identidade renovada. Façam cara de paisagem e deixem a poesia dos dias, do ser ou não ser, para outras questões. 
ANA CARDILHO