terça-feira, 3 de agosto de 2010

PROMESSAS QUE A VIDA MUDA

Infância de mãos dadas

Era uma vez dois melhores amigos que se conheceram com sete anos de idade. Desde o primeiro ano de escola, a menina e o menino estudavam juntos. Ele chegou já com o ano letivo correndo e foi colocado, pela professora, para sentar-se ao lado da menina, na primeira carteira. Ela era quieta e era estudiosa, poderia ajudar o garoto que havia perdido as primeiras lições. De início ela não gostou. Perdia o espaço na carteira dupla e ainda por cima teria que conversar com o garoto. Sentia tanta inabilidade para falar, trocar ideias, tanta preguiça! Mas, não podia recusar o novo colega e tentou ensinar a ele o que já havia aprendido. O menino era gozado. Meio fortinho, usava o cabelo repartido de lado, tinha sorriso fácil, fácil e gostava de fazer bagunça. Ria fora de hora, imitava galinha cacarejando, jogava bolinhas de papel em outros colegas na sala de aula e no intervalo deixava a colega de carteira de lado e ia chutar bola com outros guris. Ela nem ligava ou se ligava não percebia. Comia sua maçã em paz, sem precisar conversar com ninguém. Na saída da escola é que a fragilidade do menino aparecia. Nas primeiras semanas, até ele se acostumar à nova escola, quando saiam da sala de aula, em fila, o menino segurava a mão da amiga. Ela achava aquilo esquisito mas ele sorria e alguma coisa lá dentro daquele coração de sete anos dizia a ela que ele precisava daquele aperto de mão. Segurança.

Canetinhas Sylvapen
Cresceram assim. Lado a lado em carteiras de madeira escura que cheiravam a óleo de Peroba e graxa. E quando a escola adotou carteiras individuais, ainda assim sentavam-se bem perto. Muita gente achava que eram irmãos e eles não negavam. Pareciam mesmo irmãos. Com ele a menina aprendeu a falar e a sorrir. Com ela, o menino aprendeu a usar o cabelo mais comprido e espalhado, sem pentear. Gostavam de coisas parecidas, como canetinhas coloridas Sylvapen, botas de couro e solado de borracha e pulseiras de miçangas bem apertadas no pulso. Gostavam também de chocolate. Sonho de Valsa.


Na adolescência compartilharam todos os segredos que os adolescentes podem ter. Ela o ajudava com as namoradas levando recados, trazendo respostas. Ele ouvia seus planos para a vida adulta. Eles liam romances emprestados e falavam sobre Deus, sobre as estrelas, sobre a velocidade do som e da luz, sobre raios. Ele era fera em matemática e ela passava em português com louvor. No colégio participaram de concursos literários, a menina ganhou quatro anos seguidos, e cantaram uma canção de autoria da dupla, num festival juvenil de música organizado pela escola. Nisso foram vaiados. Jogavam xadrez na hora do intervalo. Iam e voltavam juntos da escola. Tantos assuntos, tantos planos! Ele faria engenharia. Ela seria escritora. Eles nunca se separariam e seriam, para sempre, os melhores amigos do mundo.

Mas.... toda história tem um "mas" (a vida é cheia de "conjunções coordenativas adversativas": mas, porém, todavia, contudo, entretanto, no entanto, senão, não obstante), as coisas não foram bem assim.
Quando os melhores amigos estavam com dezesseis anos romperam. Ele se recusava a aceitar que a menina havia crescido e tinha outros interesses além de ler poesia e conversar até a exaustão com o menino. Ele se negava a aceitar que ela era uma mulher e, como toda mulher, mais madura que um rapaz de dezesseis anos. Na última vez em que eles estiveram juntos, sentados frente a frente para uma conversa, na verdade a última conversa, era manhã. Ele estava suado, tinha feito aula de educação física e usava uma camiseta vermelha. Ela estava tensa, tinha as mãos no bolso e sentia frio. Ele reafirmou que não aceitava as escolhas de vida que ela começava a fazer. Ela ficou quieta. Ele reclamou que se sentia traído porque ela nunca havia colocado para ele, seu melhor amigo até então, aquelas dúvidas existenciais. Ela começou a chorar. Ele também. Eles ficaram em silêncio. E ela se lembrou que os dois, ali mesmo naquele pátio de colégio, anos atrás, tinham achado uma gilete velha no chão e num arroubo de ternura e de bobeira tinham feito um risco de corte em cada pulso e tinham misturado o sangue, como amigos para sempre, irmãos até de sangue. Estava rompido o pacto. Ele não queria aquela amiga e ela sabia que não poderia  caminhar levando o radicalismo dele. Não se deram tempo para pensar. Apenas se disseram rompidos. Ele levantou, secou os olhos e foi embora. Ela ficou sentada e chorou mais um pouco. Os dois, de alma de escorpião, sabiam que aquilo não tinha volta e que daquele instante para frente seria cada um por si, sozinhos. E antes de ir embora, ela ainda guardou a imagem do menino quando ele havia feito a barba pela primeira vez e foi ela a primeira pessoa que notou o rosto mais limpo, mais claro, numa tarde de férias, andando de bicicleta, na calçada da padaria. A primeira barba. O primeiro amigo. Tudo perdido.

Café com pão e saudade
Ela seguiu e não foi escritora. Ele seguiu e não foi engenheiro. Anos depois ainda se viram, daí sim pela última vez. Ela comprava pão e ele chegou de surpresa. Ela tinha no pulso esquerdo uma pulseira de couro e miçangas. Ele gostou, elogiou. Ela teve vontade de tirar a bijuteria e dar e ele. Mas nada fez. Ela teve vontade de abraçá-lo e pedir que reatassem, que voltassem a ser amigos, a dividir segredos. Mas, nada disse. Ficaram ali, na fila do pão. E depois se foram. Era hora do café da tarde. E era tarde demais para um café a dois. 
FIM

Um comentário:

  1. Ana, que história!!!! Chorei, viu? Quanta coisa boa a gente perde na vida por ter princípios rígidos, preconceitos etc. etc. etc. Uma pena uma amizade terminar assim, sem motivos concretos. Ele não sabe o que perdeu!

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