sexta-feira, 27 de agosto de 2010

GATA RUSSA

A MENINA MAIS LINDA DA CIDADE

Era uma vez uma garotinha de olhos bem azuis e cabelo cor do sol. Quem a olhasse, num primeiro momento, tinha a impressão de estar vendo um anjo. Mas, de perto era possível observar uma ponta de rabinho vermelho entre as asas... De anjo a menina só tinha a aparência. Na verdade, ela era terrível com seus 7, 8 anos. Subia e caia de muitas árvores, batia nos colegas de escola, enfrentava os valentões. Arrojada, a menina de olhos azuis não via limites para sua coragem e para a sua sede de liberdade. Entre os irmãos era a que mais se metia em encrencas na escola, na rua, na vizinhança. Com a mãe vivia às surras. Apanhava pelas traquinagens que aprontava e mesmo assim, no dia seguinte, lá estava a pequena loira subindo em algum muro, caindo de algum lugar alto ou chegando em casa com o nariz sangrando mas feliz da vida porque o moleque que a tinha machucado estava sangrando bem mais que ela. Era um anjo endiabrado ou um diabo angelical.

Aos 9 anos, a menina viveu seu primeiro contato com a dor. A mãe morreu. De repente. Jovem ainda, nem tinha 50 anos, reuniu os filhos, fez com que cada um pedisse a bênção, deitou e morreu. Como fica uma menina de apenas 9 anos sem a mãe? Apegou-se ainda mais ao pai, um italiano baixinho, de quem ela havia herdado os olhos azuis. Ele gostava de comer pão com alho frito, dividia vinho tinto com um cachorro chamado Bidu e dizia para todos que quisessem ouvir que "a vida é boa e quem não gosta da vida é que não presta". O pai levava para a menina, à noite, pão com açúcar e assim ela dormia sossegada.

 COM QUEM SERÁ QUE A GATA VAI CASAR?
O tempo passou, o anjo endiabrado cresceu e se tornou uma mulher linda, capaz de mobilizar a atenção de muitos pretendentes na pequena cidade. Ela parecia uma atriz de cinema com os cabelos muito claros, compridos, pela cintura. E aqueles olhos azuis? Ofuscavam o próprio céu. Mas era uma gata selvagem, brava que só. Com ela não tinha moleza. Gostava de sair com as amigas, dançar no clube, pular carnaval. Até que um rapaz tímido, de olhos tristes, muito bonito, de voz aveludada mas ciumento até o último fio de cabelo conquistou o coração da gata feroz. Nada fácil o namoro. Alianças quebradas no alicate, discussões, enfrentamentos, arranhões para todo lado e o moço chorava diante do espelho. Sem aquela menina de olhos azuis, ele prometia se matar. A mãe do rapaz se desesperava. Ele era filho único! Ele não podia morrer de amor. E lá ia ela à casa da gata russa com um agrado, um presente. Às vezes um corte de vestido, às vezes um bolo de fubá. Puxava conversa dizendo que o filho andava triste demais com a separação, que não comia, não dormia, não saia de casa e só chorava. A menina endiabrada, agora uma mulher estonteante, ria por dentro. A luta estava ganha. Aquele namorado estava no papo! E de briga em briga noivaram e de briga em briga se casaram.

QUEM VAI ENCARAR ?
As discussões não impediram que eles fossem felizes, que construissem um lar e tivessem filhos. A gata russa foi mãe de três crianças: uma menina e dois meninos. Eles cresceram, foram para a vida. Nenhum deles ganhou os olhos azuis ou os cabelos da cor do sol. Mas, ganharam a determinação, a firmeza e um pouco da braveza da mãe também... Eram calmos como o pai mas se fosse preciso os filhos se transformavam. Eles tinham herdado as garras da mãe que sempre os defendeu como uma leoa ferida. Quando a mulher de olhos azuis tinha 54 anos a vida estava mansa. O marido aposentado, o primeiro neto correndo pela casa, os filhos encaminhados. Por essa época ela nem sonhava em ter mais um filho.

O QUARTO FILHO
Mas, a vida é cheia de manhas e surpresas. Quando ela menos esperava, um bebê de um ano e meio, magrinho, com cabelos ralos e ancaracolados, olhos grandes e pouco apetite, chegou para ficar. Ele tinha nome de anjo e, embora fosse seu segundo neto, iria ser, de verdade verdadeira, seu quarto filho. Aquele menino precisava comer, precisava engordar, se fortalecer para não cair tão doente, não chorar tanto, não passar tão mal. Noites a fio acordada, dias de dedicação, sopinhas, sucos, consultas a médicos, especialistas, até descobrir que o garoto sofria de alergia a lactose. Comidas especiais, leite de cabra e mais dedicação e mais carinho, e mais noites mal dormidas zelando pelo sono do quarto filho. Deu certo. O bebê fraquinho cresceu um touro. Costas largas, cabelos aos montes, ossos fortes e um sorriso zombeteiro no rosto. Ela havia conseguido. Quando imaginava que só seria avó, que só receberia a visita dos filhos para o almoço de domingo, quando imaginava que viajaria mais para ver as irmãs na cidade natal, que teria tardes meio vazias, sem nada pra fazer, ela viu que não seria nada disso. Mas, teve energia, se fez leoa feroz de novo e criou o quarto filho. E ele cresceu um menino feliz.

GATA RUSSA QUER AÇÚCAR
A mulher hoje com sessenta e quatro anos sabe que fez um bom trabalho com aquela família. Sabe o quanto é amada pelos quatro filhos, pelos netos e pelo marido que está ali, firme e forte, ao seu lado. E se um dia ele a perder pode voltar a chorar na frente do espelho e dizer que sem ela não consegue viver. Ela ainda é uma leoa selvagem. Acho que nunca vai perder a força, a energia para resolver coisas, para quebrar tabus, para defender quem ama. Mas, dentro do coração da leoa ainda mora a menina... a de asas de anjo e rabinho, pulando de árvore em árvore, caindo dos muros e deixando colegas com um olho roxo. Sabendo o que sei hoje da vida, posso dizer que a leoa também precisa de carinho, precisa que os quatros filhos, netos e marido a peguem no colo e levem para ela, à noite no quarto, um belo pedaço de pão recheado com açúcar. Afinal, nem todo dia é dia para rugidos, garras e arranhões. Tem momentos, em que todo felino, por mais bravo que seja, quer mais é um afago nas costas e quer ronronar um pouco... feito um gatinho manso, manso...

6 comentários:

  1. Sua mãe é linda mesmo! aqueles olhos azulejam o mundo - que bonita inspiração! Beijos JM

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  2. Acho que somos todos um pouco assim, uns dias leão, outros dias gatinho... mas a inspiração para colocar isso em letras, de maneira tão bonita, apenas alguns conseguem! Parabéns!

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  3. Bela estória! pra mim, foi um filme e não um texto. Consegui visualizar cada passagem!
    Seu texto é maravilhoso, Ana!

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  4. Meu coração, bela estória, foi como se eu estivesse assistindo a um filme.
    O seu texto é como voce, melhora a cada dia que passa.
    Parabéns meu anjo. Continue assim.
    Um beijo no coração !!!!

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  5. Meu coração, bela estória, foi como se eu estivesse assistindo a um filme.
    O seu texto é como voce, melhora a cada dia que passa.
    Parabéns meu anjo. Continue assim.
    Um beijo no coração !!!!

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  6. Ana, adorei a estória... Não conhecia o lado "leoa" da tia.
    Beijos

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